“Falar e ser ouvido verdadeiramente”
Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 16:10:00
Por Natália Vieira e Poliana Moreira
“Há uma complexidade que não tem sido muito considerada, como se a linguagem oral fosse muito simples.” Os contextos de aprendizagem e desenvolvimento da oralidade na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, bem como sua relação com a aquisição da escrita, são tema desta entrevista concedida ao Letra A pela professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Denise Maria de Carvalho Lopes, que coordena o grupo de pesquisa Processos de Aprender e Ensinar na Educação Infantil.
“Criar situações cotidianas de ouvir as crianças verdadeiramente, em que elas possam relatar fatos, contar experiências, opinar e falar dos seus sentimentos em relação a essas experiências” e ser “um observador das crianças” estão entre as propostas que Denise Lopes apresenta em favor de um trabalho pedagógico que busque o desenvolvimento não só da linguagem, mas também de possibilidades para a criança “se constituir como sujeito diante dos outros e do mundo”.
Na Pedagogia houve, ao longo do tempo, mudanças no modo de compreender o desenvolvimento da linguagem oral nos primeiros anos de vida?
Essa discussão vem ganhando centralidade a partir da difusão dos debates que têm acontecido tanto em relação à própria linguagem oral – a linguagem em si no campo da Linguística mais ampla e da Psicolinguística, da Antropolinguística e da Sociolinguística, que reconfiguram o que é linguagem e como ela é aprendida –, como também nas discussões sobre a criança – [agora] concebida como sujeito que aprende, capaz de opinar e de tomar parte das decisões que lhe dizem respeito, e capaz de produzir cultura, ou seja, produzir sentidos sobre o mundo, produzir linguagem. Esses sentidos precisam ser levados em conta na elaboração de propostas e intervenções junto à própria criança, o que, por sua vez, desdobrou-se em preocupações e interesses: como as crianças aprendem a linguagem? Como aprendem e desenvolvem a capacidade de produzir linguagem e praticar a linguagem?
A criança precisa da ação intermediária do ‘outro’ (familiares, professores, colegas) para que possa se relacionar com o mundo e desenvolver sua linguagem. Como ocorre essa construção da linguagem?
A linguagem é uma prática cultural e uma construção humana. Ao longo da história, os homens construíram um sistema de signos com o qual são capazes de representar tudo o que existe, se comunicar e internalizar - ou seja, constituir seu mundo interno. Eu assumo a perspectiva da abordagem histórico-cultural de Vygotsky, de uma lei geral de desenvolvimento das funções psíquicas tipicamente humanas. Todas essas funções – entre elas, a linguagem – existem primeiramente no plano social. É depois que elas se transformam, exatamente pela mediação do ‘outro’ e da própria linguagem, em modos de funcionamento psíquicos individuais. Ninguém se apropria daquilo que é vivenciado e compartilhado socialmente de uma forma especular (como uma reprodução), porque o modo como nos apropriamos é sempre diferente, já que o signo tem a característica de ser fluido – não é a mesma coisa o tempo inteiro e para todas as pessoas.
De que forma os primeiros rudimentos da fala – gestos e balbucios – têm relação com os processos de elaboração da linguagem? Como estimular o desenvolvimento da linguagem oral a partir desses sinais?
A criança tem a fase dos balbucios, que são exercícios vocais articulados que funcionam muito mais como exercícios sensoriais. É o efeito sensorial que aquilo provoca que suscita na criança a reiteração. Por outro lado, não podemos descolar isso da dimensão da criança no meio social. À medida que os bebês começam a emitir sons, no contato com os outros seres humanos, estes tendem a responder a essas vocalizações com expressões e gestos, o que, com certeza, não escapa à criança. Isso gera uma possibilidade de repetição, transformação e ampliação desses sons. Juntamente com isso, os movimentos que, de início, são sem nenhum propósito vão sendo interpretados pelos outros que convivem com o bebê como se fossem gestos. À medida que os adultos entendem como ‘ah, ela está mostrando algo’, essa interpretação vai suscitando a reiteração do movimento e a criança passa gradativamente a converter aquilo que o outro faz para ela como signo. Isso acaba sendo o primórdio do que são as simbolizações, como se fosse uma mensagem para o outro.
As crianças dizem pedaços de palavras, passam a repetir, e o modo como isso é tomado no meio social tem um potencial para intensificar – ou não – a produção pela criança. Uma palavra não é só um som, ela carrega em si um significado. Quando a criança fala pela primeira vez – ou pelas primeiras vezes – uma palavra, não significa que já compreende o seu significado, [apenas] pelo fato de conseguir pronunciá-la corretamente ou quase corretamente. Quando ela aponta e diz ‘au-au’, ou ‘mamãe’, não significa que já saiba o que significa uma mãe, um cachorro. Ela vai necessitar de um tempo de experiências para elaborar essa palavra em outro contexto, para que essa palavra vá ganhando a sua função de categorização, encerrando ali uma generalização social. Quando a gente diz ‘mãe’, ali está uma generalização social: é uma referência a todas aquelas criaturas que se inserem naquela categoria que as difere para nomearmos alguém como sendo mãe.
Muitas vezes, a linguagem escrita é considerada mais complexa do que a oral, pois depende do ensino que, na maioria das vezes, é realizado quando a criança ingressa na escola. Quais são as complexidades que a criança enfrenta na fase estritamente oral e na fase na qual se inicia o processo de ensino da linguagem escrita?
Com relação à linguagem oral, acho que ainda precisamos trabalhar mais na escola com elaboração conceitual – não apenas como conceitos isolados, mas trabalhar [também] a elaboração da palavra pela criança na produção de textos e discursos. Há uma complexidade que não tem sido muito considerada, como se a linguagem oral fosse muito simples. E o que acontece, muitas vezes, é que as crianças até pronunciam determinadas palavras, mas o significado para ela ainda é pobre, e poderia ser mais enriquecido. Precisamos aprender mais sobre isso e trabalhar mais essa elaboração pela criança nas situações da escola.
A linguagem escrita, como diz Vygotsky, é uma representação de segunda ordem, [pois] ela já representa a linguagem oral – com algumas regras. Há muita coisa da linguagem oral que não é representada na linguagem escrita. A entonação, expressões que são constitutivas de sentido: uma mesma palavra pode mudar totalmente de sentido dependendo da entonação, de expressões com as quais a pessoa fala e isso não está dado na linguagem escrita – que tem regras que dizem respeito ao que é representado e ao que deixa de ser representado. No caso da nossa linguagem escrita, ela representa o som das palavras faladas e a composição de sentido vai tendo que ser produzida também com mais palavras escritas. Ao mesmo tempo, são duas linguagens que mantêm estreita relação, inclusive de representação, mas que têm propriedades diferentes.
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