“Falar e ser ouvido verdadeiramente” (2)
Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 16:16:00
Propiciar às crianças o desenvolvimento da linguagem oral é mais que ensiná-las a falar. É, também, ajudá-las a se comunicar em diversas situações. Qual a importância, para garantir esse desenvolvimento, de inserir as crianças em diferentes contextos?
Cada ambiente tem sua produção linguística e produz seus textos. A criança que convive na igreja, com os vizinhos, com os colegas na própria escola, na sua casa, está, em termos de repertório de vocabulário, aprendendo mais palavras, mas também está aprendendo modos de significar e entender o mundo e aumentando a possibilidade de produzir sentidos cada vez mais diversos. Então, inserir as crianças em diferentes contextos é fundamental. [Também é fundamental] considerar que a Educação Infantil e a escola de modo geral constituem um contexto por excelência de aprendizagem e desenvolvimento da linguagem e de diferentes linguagens além da linguagem verbal, [como] dos desenhos, da brincadeira, da música, dos gestos, dos movimentos… Então, é preciso ampliar e diversificar as experiências da linguagem.
As crianças têm uma transformação intensa de 0 até 5 anos com relação à linguagem oral. Portanto, aquelas que vivenciam todos os dias as mesmas experiências, ou as que não são muito ouvidas e não são chamadas a comentar, discordar – [para] que elas possam produzir linguagem de diversas maneiras, com diversas intencionalidades – perdem no desenvolvimento não só da linguagem oral, mas do seu conhecimento e das suas possibilidades de dizer e se contrapor a esse mundo; de se constituir como sujeito diante dos outros e do mundo.
Como os professores podem conciliar suas práticas pedagógicas com as experiências pelas quais as crianças passam não só na escola, mas também em casa, ou em qualquer outro ambiente, para que o desenvolvimento da linguagem na sala de aula se dê de forma mais integrada às vivências de cada aluno?
Acho que para isso é imprescindível ouvir as crianças, saber sobre suas experiências. Os professores precisam criar situações cotidianas de ouvir as crianças verdadeiramente, em que elas possam relatar fatos, contar experiências, opinar e falar dos seus sentimentos em relação a essas experiências. Não apenas fazer uma narrativa enumerativa (‘foi isso, isso, e isso’), mas levar as crianças a pensarem sobre isso. [Também] a elaborarem textos orais que possam ser depois retomados para que a professora possa, nessa retomada, junto com as outras crianças, observar os modos diferentes de relatar as experiências, reforçando semelhanças: “Fulano usou uma palavra muito bacana, que a gente não tinha falado ainda, essa palavra é muito engraçada, o que ele quis dizer?” Chamar a atenção das crianças para ‘o que isso quer dizer’ significa iniciar as crianças em uma reflexão sobre a linguagem. Eu penso que esse exercício precisa ser cotidiano, tanto na Educação Infantil, quanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Isso se exercita tanto em relatos, como em outras práticas cotidianas, como dizer recados, enumerar coisas que se está vendo, averiguar acontecimentos, planejar oralmente situações. Ou seja, praticar a linguagem com diversos objetivos, o que vai implicar diferentes estruturas textuais. Uma coisa é a criança fazer um relato, outra coisa é ela explicar o que vai fazer para, por exemplo, produzir um brinquedo. É outra estrutura textual com a qual ela vai ter que operar. E, também, trabalhar com textos orais que estão vivos na sua comunidade, como piadas, quadrinhas, pequenas poesias, ditos populares, enfim, os textos orais que circulam.
Há atividades específicas indicadas para a Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental?
Como eu disse antes: conversa, conversa, conversa. Se você observar, em quase todas as escolas tem hora de conversa. Às vezes, ela se torna algo mecânico: a professora diz geralmente às segundas-feiras: “o que vocês fizeram no fim de semana?”. E as crianças já passam a responder mecanicamente e as professoras às vezes nem prestam atenção. As crianças precisam ter a oportunidade tanto de dizer como de ouvir os outros, e serem questionadas sobre o que acabaram de ouvir, para que não seja mecânico. Às vezes, a criança fala e ninguém pergunta: “Não entendi o que você quis dizer. Diga de novo? Vamos prestar atenção, gente”. Está entendendo? É envolver todos.
[Outra atividade]: a criança fazer um relato e isso ser gravado, para ela ouvir o grupo e o que ela própria disse; ouvir como fez o relato e poder pensar sobre isso. Eu acho que são atividades ricas que podem contribuir para essa ampliação dos modos de elaborar seu discurso. [Também pode-se estimular a criança a] falar sobre o que sentiu quando viu algo. Não só ver um filme e falar do que conta o filme, mas do que sentiu. Então é falar e ser ouvido verdadeiramente, respeitado e considerado. Ou seja, investir diariamente em situações cotidianas em que as crianças possam falar, elaborando cada vez mais esse falar com diversas finalidades e com diversas estruturas. Por exemplo, que elas possam não apenas contar, relatar, mas argumentar, opinar, planejar, que elas possam produzir textos orais com estruturas diferentes, com objetivos diferentes, conteúdos diferentes, mesmo no Ensino Fundamental. Explicar, opinar, argumentar, discordar ou concordar, justificar: [essas ações] requerem elaborações diferentes da linguagem oral, [requerem] uma relação entre linguagem e pensamento.
Existem abordagens que as professoras devem evitar, que talvez inibam o desenvolvimento oral das crianças?
Eu diria as atitudes que são impeditivas de as crianças falarem. Por exemplo, muitos professores se dirigem às crianças só com ordens (‘não faça isso’, ‘fique assim’), e não de modo questionador, que faça a criança se posicionar e assumir uma posição de sujeito. Acho que esses modos em que o professor é quem mais fala são fazeres pedagógicos que podem não contribuir muito para o desenvolvimento da linguagem das crianças. É preciso que elas tenham também espaços de participação no diálogo, participando verdadeiramente como sujeitos, sendo respeitadas em seus modos de pensar. Eu penso que é fundamental que se crie, em cada turma, um clima de confiança para que as crianças se sintam acolhidas como um sujeito que pode falar, expressar seus pontos de vista e sentimentos.
E como respeitar as diferenças e o tempo de aprendizado de cada criança nesse aprendizado da linguagem oral?
Acho que do mesmo modo como precisamos respeitar todas as aprendizagens: criando situações em que todas as crianças possam participar segundo suas possibilidades, respeitando-se as necessidades diferentes de cada um. Não significa desprezar as que estão mais avançadas ou menos avançadas, mas – pelo contrário – criar situações em que elas possam, em seus ritmos diferentes, participar dentro de suas diferenças e com suas diferenças. O professor pode criar estratégias em que as crianças que sempre falam por todos possam aprender a se conter um pouco mais e esperar as outras; e, para aquelas crianças que quase nunca falam, criar situações que exigem uma interação mais face a face, para ir quebrando essa resistência pouco a pouco. Na hora do parque, por exemplo, ou no final do dia, criar um momento em que ele possa estar com aquela criança que fala muito pouco, para que, talvez, junto somente com o professor, ela possa falar um pouco mais.
Acho que o professor precisa ser, antes de tudo, um observador das crianças e tentar captar, por meio da observação, situações em que as crianças parecem se sentir um pouco mais à vontade, e investir nessas situações. Ele tem que ser um observador para desvendar como se fossem os mistérios de cada criança: para poder ajudá-las, ele precisa perceber primeiro o que elas precisam e suas potencialidades. Onde ele poda, pode estar o potencial.
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