Formando alunos-autores

Projetos de escrita literária favorecem a intimidade com o gênero a ser trabalhado, estimulam a reescrita e promovem a circulação das produções dentro e fora da escola


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 15:47:00

Por Vicente Cardoso Júnior

Todos no recreio, somente uma criança na sala. Passos no corredor a fazem sentir medo de ser descoberta ali. Só queria pensar mais um pouquinho... Já em casa, se fecha no quarto para retomar a missão. Na manhã seguinte, olheiras incomuns para a idade: varou a noite acertando alguns detalhes. Após a entrega do trabalho, uma semana de ansiedade, até que finalmente reencontra sua obra! Um reencontro pouco empolgante: umas poucas rasuras vermelhas acompanham a mensagem lacônica: "Que medo! Ótima história de suspense! Parabéns!".

O mais temível fim para essa história é ela se juntar a provas e inúmeros outros textos escolares em alguma gaveta. Para a professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Elisa Dalla-Bona, o pouco tempo dedicado à reescrita e uma baixa circulação dos textos são fatos comuns nas atividades escolares que propõem a criação literária pelos estudantes. “O que é a literariedade, a busca por burilar essa arquitetura do texto literário, fica para dia nenhum”, alerta. Ter a oportunidade de ir e voltar na própria escrita, assim como saber que seu texto deverá ser lido por muitas outras pessoas, faz parte da formação de um aluno-autor, principalmente quando se pensa em textos de natureza literária.

 

Conhecimento sensível

“A escola tem uma função de mostrar para as crianças que o texto literário sensibiliza”, afirma a professora Adriane Oliveira e Silva, ao comentar as oficinas de poesia que desenvolveu em sua pesquisa de mestrado, com crianças de 9 e 10 anos, estudantes do 4º ano da Escola Municipal Senador Levindo Coelho, em Belo Horizonte (MG). Como instrumento para essa sensibilização, a professora criou o “Caderno de poesia”: cada criança ganhou um, para nele copiar poemas de que tivesse gostado, para desenhar ali suas interpretações do que leu, para levar para casa e ler com os pais... Além disso, escrever seus próprios textos poéticos era uma parte do processo. “O importante não é o final. Se o professor pensa só no produto final, talvez não desenvolva bem o processo, aí o final vai ser muito ruim”, afirma Adriane, que, com algum tempo de oficinas, passou a ouvir das crianças interjeições do tipo: “Nóóó, que poético, professora!”

Adriane Oliveira também destaca que é importante uma espécie de mergulho no gênero literário em que a escrita irá se desenvolver. Em projetos que acompanhou, que resultaram na produção de livros de crônicas, ela conta como essa apresentação do gênero ocorreu de maneira integrada e prazerosa. “Primeiro, eles leram 40, 50 crônicas. O debate em torno do que caracteriza uma crônica estava ali num movimento muito gostoso: ler individualmente, ler em dupla, ler para uma turma mais nova; a família se propôs a escrever crônica...” Assim, foi possível criar um ambiente que Adriane chama de conhecimento sensível, para que a criança se interessasse pela proposta. E somente depois da criação desse interesse, lançou-se o convite: “Então, que tal a gente escrever um livro de crônicas? O que vocês acham disso?’”

 

Mãos à obra

Voltamos, então, ao impasse que abre esse texto: como o professor poderia orientar a criança na escrita de sua história, indo além das correções de ortografia e gramática? Elisa Dalla-Bona indica algumas estratégias, sendo a primeira a orientação para o planejamento do texto, por meio de um esqueleto de ideias. Após a entrega da primeira versão, é o momento da reescrita. Ou melhor, de várias reescritas. “Às vezes os alunos entregam tudo ‘de cara’ no texto, mas depois começam a tirar, porque percebem que o leitor será capaz de fazer inferências.” Também é fundamental expor o texto a uma comunidade de leitores para testar se os efeitos de sentido pretendidos foram alcançados. “Quando o aluno-autor lê para um determinado público e percebe que, no momento que ele queria fazer rir, não consegue provocar aquele efeito, os colegas podem dar sugestões e ele tem a oportunidade de reescrever.”

Por fim, hora de encontrar um destino melhor do que a gaveta para as produções das crianças. No ano passado, a professora Edilene Araújo valeu-se da escrita de um livro para finalizar um projeto realizado com uma turma de 3º ano da Escola Municipal Terezinha Cosenza, em Rio Acima (MG). Edilene guiou a escrita coletiva por meio de perguntas, ligando o processo que eles queriam relatar aos elementos constituintes de uma narrativa, como tempo, espaço e narrador: “Quando essa história que nós queremos guardar começou?”; “E onde começou?”; “Quem vai ser essa pessoa que vai contar a história?“ Trata-se da história de Felipe, um colega de turma fictício, que no livro vive a mesma experiência da turma no projeto, que envolvia educação ambiental. Ao final da narrativa, já adulto, o personagem leva o filho para conhecer as árvores que plantou quando criança. O texto foi escrito coletivamente e cada página foi ilustrada por uma dupla. Segundo Edilene, os estudantes amadureceram bastante na organização espacial de sua escrita, principalmente porque sabiam que aquele texto teria vários outros leitores, na escola e em suas casas.