Graça Costa Val: Escrever é comunicar

Em entrevista, pesquisadora comenta habilidades de leitura e de escrita a serem desenvolvidas na alfabetização inicial e na sequência do Ensino Fundamental


     

Letra A • Sexta-feira, 16 de Fevereiro de 2018, 14:16:00

O que é ‘texto’? Os primeiros contatos com esse conceito e seu desenvolvimento são de grande importância para a criança que aprende a escrever, nos mais variados gêneros textuais. Nessa entrevista concedida ao Letra A, a professora Maria da Graça Costa Val comenta as habilidades de leitura e de escrita que precisam ser desenvolvidas tanto na alfabetização inicial quanto no processo de ensino de escrita na educação básica e sugere atividades para que isso se realize. A docente aposentada da Faculdade de Letras da UFMG e pesquisadora do Ceale fala ainda sobre os mais de 15 anos em que esteve envolvida nas avaliações do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Por Luiza Rocha

Um texto só é caracterizado como tal se faz sentido para o interlocutor. Como a criança começa a criar uma compreensão do que é texto, e como a escola a auxilia no desenvolvimento desse conceito?

A psicologia cognitiva tem algumas afirmações no sentido de que, a partir dos 7 anos, a criança consegue se colocar no lugar do outro e, então, pode começar a pensar: “e se eu fosse a Luiza… Quem é ela? O que eu quero dizer a ela? O que ela sabe? O que ela não sabe?” Produzir texto implica sempre isso. “Quem é essa pessoa diante de mim, que eu posso tomar como interlocutor? Convém a mim falar com ela? O que tenho a dizer? Posso dizer isso a ela? O que ela sabe e o que ela não sabe sobre esse assunto? Eu quero fazê-la rir ou ficar com raiva?” Mesmo sem planejar ou tomar consciência, nós levamos o interlocutor em conta e começamos a agir textualmente e discursivamente de acordo com a imagem que fazemos dele e da relação que existe, ou vai se estabelecer, entre nós e ele.

Quando eu fiz a minha pesquisa de doutorado – o título da tese é “Entre a oralidade e a escrita” – observei crianças que estavam no primeiro ano da alfabetização. Eu trabalhava com elas antes de saberem escrever, no início do ano letivo, e cheguei a fazer uma intervenção no segundo semestre, quando vi que, até o final do ano, elas não conseguiriam escrever um texto. Uma vez, eu propus a elas que fizéssemos um livro de brincadeiras. A ideia era que cada criança gravasse em áudio um texto ensinando uma brincadeira ou explicando como se faz um determinado brinquedo. Pedi que se preparassem em casa e, no dia marcado, nos sentamos em roda e o meu gravador ia passando de mão em mão, para quem quisesse falar. Aí, uma menina que queria ensinar a pular amarelinha, ficou em pé e, enquanto fazia os movimentos, ia dizendo: “Primeiro pula assim, depois pula assim, depois com um pé só até chegar aqui”. Um menino resolveu ensinar a fazer carrinho de rolimã. Ele falava: “Pega um pedaço de pau desse tamanho, depois põe outro cruzado.” E, para despertar nas crianças a noção de interlocutor ausente (como ocorre quando se escreve), o que eu fazia era deixá-los ouvir o próprio texto oral e perguntar: “se alguém ouvir o que você falou sem ver os gestos, vai saber fazer carrinho de rolimã? Ou: uma pessoa que nunca pulou amarelinha vai aprender com o que você ensinou?”. Eles percebiam o problema e viam a necessidade de modificar o texto. O menino do rolimã falou para mim: “Então eu posso desenhar?” E eu me lembrei: isso é exatamente o que os manuais de instrução fazem. O menino teve a intuição de que ficaria melhor fazer o desenho e pôr junto ao texto, com as explicações, já que era difícil descrever oralmente um carrinho de rolimã, com a posição e as medidas das peças.

Outra intervenção que fiz na sala de aula foi quando um colega deles se mudou de Belo Horizonte. Eu sugeri que escrevêssemos uma carta ao menino, uma carta coletiva. Eles falavam e eu escrevia no quadro. Alguma criança falou: “pergunta se lá tá bom”. Eu falei: “como eu vou escrever? Dita para mim”. Ele disse: “lá tá bom?”. E perguntei para a turma: “Quando o Henrique ler a carta, ele vai entender?”. Eles demoraram, até entender que não podia ser “lá”, porque “lá” é para nós, produtores, mas, para o interlocutor, tinha que ser “aí”. A escola pode criar essas situações nas quais a criança se verá no lugar do outro.

 

Do ponto de vista da formação do professor, quais os quadros teóricos mais importantes para ele conhecer no campo da Linguística, que podem apoiá-lo nesse processo de conduzir a criança no aprendizado da leitura e da escrita?

Na área da leitura, e muitos estudiosos dizem isso, desde uma vertente da psicologia cognitiva americana, passando pela psicolinguística e por teorias da linguagem, da semiose, do discurso e do texto, o que a gente reconhece é que, em primeiro lugar, o leitor produz sentido. A questão é: como o leitor compreende o texto? A psicolinguística propõe uma série de habilidades necessárias para a compreensão. A habilidade preliminar, básica, é localizar as informações visíveis na superfície de um texto (escrito). Por exemplo, você tem uma história que fala de uma princesa, filha de um rei. Algumas das perguntas que demandariam habilidade de localização seriam: “como se chamava a princesa? Quem era seu pai? Onde ela morava?” Essas informações estão no texto, mas responder a elas não é suficiente para se entender o texto. Entre outras coisas, é preciso ter a habilidade de relacionar informações umas com as outras, para ter uma compreensão geral do texto. Outra habilidade psicolinguística muito importante é a de produzir inferências, porque nenhum texto traz tudo explicadinho. Grande parte das informações do texto fica implícita, e o leitor faz suas deduções, com base no que já conhece sobre o assunto, no que ele sabe sobre o gênero textual – sua função e a situação de comunicação em que esse gênero é usado. A criança tem que desenvolver e ampliar essas habilidades, das quais já pode ter se apropriado intuitivamente na convivência social. Por exemplo, se eu falar simplesmente “naquela tarde estava chovendo”, o que eu deixei de falar? Que o chão estava molhado, que podia ter poça d'água, que o chão estava escorregadio. Por isso, depois de ter dito que estava chovendo, eu posso dizer, sem mais explicações, que um carro passou correndo e molhou as pessoas no ponto de ônibus. Essas são habilidades cognitivas ou psicolinguísticas. Mas há outras também muito importantes.

A gente tem contribuição de várias áreas para nos levar a fazer um quadro mais completo de como o leitor produz sentido. Um dos elementos desse quadro são os conhecimentos que o leitor tem sobre o assunto antes de começar a leitura. Vamos imaginar alguém que não conheça nenhum dos contos de fada da nossa cultura ocidental. Esse alguém vai ter dificuldade para entender o livro O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, que fala do que aconteceu com Branca de Neve, Cinderela e as personagens de outros contos, depois que se casaram com príncipes encantados. Na escola, em casos semelhantes, o professor vai precisar sondar se os alunos têm os conhecimentos prévios necessários para compreender o texto e, em caso negativo, terá que trabalhar esses conhecimentos com eles.

É bom, também, saber quem é o autor, quando o texto foi publicado, a que público ele se dirige. A partir dessas informações, vamos entender melhor o que ele diz e por que diz de uma certa maneira, com determinado estilo de linguagem. Uma revista destinada ao público feminino adolescente certamente vai tratar de temas diferentes e adotar uma linguagem diferente, por exemplo, de uma revista destinada a homens de negócio.

Quero dizer: as contribuições teóricas necessárias ao professor que deseja formar bons leitores vêm de vários lugares: da psicolinguística, das teorias cognitivas, mas também da análise do discurso, da linguística da enunciação, da linguística do texto. É um quadro composto de muitos conhecimentos que vão se complementando. Mas não é nada tão complicado assim. Esse quadro pode ser assimilado com facilidade pelo professor interessado.

 

Em relação ao maior número de disciplinas no Fundamental II e à sua especificidade em diferentes áreas do conhecimento, que potencialidades isso oferece em relação ao aprendizado da língua?

O pensamento dominante hoje é que o objetivo do ensino de Língua Portuguesa é: o aluno precisa ser um bom usuário da língua. Isso já estava nos PCN, em 1997 e 1998. Ele precisa escrever com autonomia o gênero textual mais adequado para a situação comunicativa em que está envolvido. Ele precisa ler com compreensão textos de vários gêneros, precisa falar, dominando o gênero conveniente ao contexto, e ouvir com compreensão. O ideal seria formar um estudante que tivesse condição de ouvir jornais na televisão com compreensão crítica e ler notícias na Internet com compreensão crítica. Isso quer dizer que o ensino que se propõe atualmente não se limita ao estudo da gramática pela gramática, como se o aluno, no 6º ano, devesse aprender apenas as classes de palavras, no 7º, apenas os termos da oração, no 9º ano, apenas a estrutura do período composto. Isso aí, solto, não serve para nada. Está mais que esclarecido que saber essa gramática, em que apenas se decora a terminologia e se identificam e classificam palavras e estruturas sintáticas, não ajuda a ser um bom leitor, bom escritor ou um bom usuário da língua falada, com as habilidades linguísticas básicas: ouvir, falar, ler e escrever. O objetivo do ensino de Língua Portuguesa é esse e, nesse caso, a gramática vem para ajudar. Enfim, esse conhecimento gramatical tem que funcionar a seu favor, no sentido de torná-lo um usuário da língua mais competente, consciente e crítico.

 

Em um artigo de 2002, você propõe uma inversão do método tradicional de ensino de “teoria-exemplo-prática”, propondo um começo pela prática. Como vê essa questão hoje?

Essa proposta de inversão está nos PCN, de 1997 (dos anos iniciais do ensino fundamental) e de 1998 (dos anos finais). Isso vem de certas teorias epistemológicas, quer dizer, certas teorias do conhecimento humano, que indagam como as pessoas pensam, como aprendem, como se apropriam do conhecimento. Segundo as teorias construtivistas, quando queremos entender uma coisa, tentamos interagir com esse objeto e compor uma ideia ou um conceito sobre o que é, como funciona, para que serve… Se essas teorias estiverem certas, o ensino terá de caminhar por aí: primeiro propor um problema ao aluno, para ele pensar sobre a questão, analisar, refletir e encontrar uma resposta. Ou seja, interagir com um objeto de conhecimento, refletir sobre ele e, então, elaborar um conceito ou inferir uma regra, o que vai possibilitar e facilitar o uso, a aplicação desse conhecimento que ele construiu em diferentes situações.

No ensino de Língua Portuguesa, é possível trabalhar nessa direção, por exemplo, com a acentuação gráfica, orientando os alunos a observar e analisar as palavras de um texto pequeno, ou de uma passagem de um texto, para entenderem o princípio básico desse sistema e suas regras. Etapa por etapa, eles podem perceber que: 1. as palavras que não têm acento são bem mais numerosas do que as que têm; 2. as palavras que não têm acento são paroxítonas ou oxítonas. Se eles analisarem listas de proparoxítonas, paroxítonas e oxítonas, podem chegar ao princípio que organiza o sistema: o acento é para marcar alguma coisa na tonicidade da palavra diferente da tendência geral da língua portuguesa. Eles podem também inferir, pelo menos, as regras mais gerais da acentuação gráfica. As regularidades ortográficas e também alguns aspectos da sintaxe da norma-padrão podem ser trabalhados com esse encaminhamento. Eu acredito que, se o aluno reflete sobre o objeto de conhecimento e “descobre” regras e conceitos, seu aprendizado se torna mais sólido e duradouro do que quando ele memoriza, identifica e classifica sem entender com clareza o que estudou. É claro que esse processo reflexivo de aprendizagem deve ser mediado pelo professor, com uma orientação organizada e consistente, intencional e planejada.

 

Quanto aos gêneros textuais, poderia apontar alguns que surgiram nos últimos tempos? Como determinar quais são os mais relevantes para trabalhar na sala de aula?

Um gênero surge quando vai se consagrando um determinado uso comunicativo na sociedade. Isso vai surgindo historicamente. Por exemplo, como fazemos quando alguém faz uma compra e quer um comprovante? Eu vou a cada vez escrever “a sra. Fulana de Tal veio ao meu armazém no dia tal e comprou 1 kg de arroz NNN, 1 lata de óleo GGG, 1 maço de velas ZZZ”? Qual é a maneira rápida de se fazer isso? Um recibo. Alguém cria um modelo de recibo e esse modelo vai se difundindo, se “generalizando” nessa esfera da atividade humana, que é o comércio. Na medida em que novas tecnologias vão surgindo, uns gêneros morrem e outros surgem. O gênero carta de amor. Tinha gente que fazia coleção de modelos de carta de amor, com cartas para dizer que estava com saudade, para terminar o namoro, e esses modelos eram até vendidos em livrarias e bancas de jornal. Atualmente, dificilmente alguém vai escrever uma carta de amor e postar nos Correios para outra pessoa receber. O que você faz: manda um Whatsapp, um e-mail, um áudio. Novos gêneros surgem em função das necessidades sociais e das possibilidades da tecnologia. Mesmo que você tenha a mesma finalidade, você não vai se valer de um gênero ultrapassado, como a carta de amor (a menos que queira causar impacto). Manda um áudio e resolve o problema. Há numerosos exemplos de gêneros que surgiram depois da invenção do computador e da Internet.

Para determinar que gêneros trabalhar na sala de aula, o professor deve considerar muitas coisas, como a idade das crianças, o universo delas, pensando nos gêneros com os quais elas estão familiarizadas, quais as suas possibilidades financeiras – se todos têm celular, por exemplo. Se não têm, vai trabalhar outras coisas. De qualquer maneira, existem muitos gêneros com os quais as crianças podem lidar no início da alfabetização. Os professores já sabem disso. Fazer lista, agenda de nome de colegas com telefone, lista de compra, receita, convite para aniversário. Até um crachá com cordãozinho pendurado no pescoço é um texto, e criança de 6 anos já pode fazer isso. Ou botar uma plaquinha em cima da carteira com o nome dela. Ou fazer etiquetas para organizar a sala: uma para a prateleira de livros, outra para a de revistas, outra para a de materiais, como tesoura, fita adesiva, cola, lápis coloridos, etc. Cada palavra fixada numa prateleira se torna um texto, porque tem um significado e um objetivo dentro daquele contexto. Um texto do gênero etiqueta.

 

A leitura e a escrita são fundamentais para todas as áreas do conhecimento. Como seriam as boas práticas do professor de Língua Portuguesa para promover a interdisciplinaridade?

Na verdade, o ensino de Língua Portuguesa é transdisciplinar, porque os textos selecionados para a leitura de alunos da Educação Básica não falam de gramática, falam de fatos diversos, narram histórias ficcionais, fazem relatos de viagem, apresentam descobertas científicas, diferentes culturas, produções artísticas, discutem problemas sociais e questões relativas ao meio ambiente etc. Eles têm sempre um tema oriundo de outras áreas. A leitura desses textos envolve uma interdisciplinaridade necessária, da qual não se pode escapar, e que requer conhecimentos de outras disciplinas: Geografia, História, Biologia, Matemática etc. Como compreender uma notícia, por exemplo? É preciso saber onde se passam os fatos narrados: num país pobre ou rico? Em situação de paz ou de guerra? O que aconteceu no passado que levou à situação atual? Num lugar que fica no alto de uma montanha, à beira mar, à margem de rio? Tem clima quente ou frio? As informações podem estar fundamentadas em percentuais, dados estatísticos; podem ter relação com questões ambientais, como a proliferação ou a extinção de espécies animais ou vegetais, o desabamento de um barranco, uma enchente, o ressurgimento de uma doença.

Por isso, é sempre possível conjugar o trabalho em Língua Portuguesa com o que se faz em diferentes disciplinas. É possível organizar todo o ensino em projetos interdisciplinares, ou promover pequenos projetos temáticos que articulem conhecimentos de disciplinas diversas. Uma feira de Ciências, uma exposição de trabalhos, a apresentação de uma peça de teatro, uma campanha destinada à comunidade escolar ou extra-escolar também podem se converter em oportunidades para o trabalho interdisciplinar. No caso da peça de teatro: trata-se de uma obra literária, cuja encenação pode requerer conhecimentos históricos e geográficos (em que época se passa a história, em que lugar, quais os costumes, os trajes, a ambientação, o cenário adequados); a Física pode ser chamada para explicar como se fazem a iluminação, a produção musical, os efeitos visuais e sonoros; as artes estão presentes em todas as etapas do trabalho. Em qualquer evento, se há pesquisa a fazer para dominar o tema, aí estão a leitura e a escrita; se é preciso produzir cartazes, folhetos, convites, aí está a escrita; a oralidade estará presente na apresentação verbal à comunidade, na recepção dos convidados. A Língua Portuguesa está em colaboração com outras áreas do conhecimento em todas as fases do desenvolvimento de um projeto.

 

Pensando em produção de texto escrito, como definir que habilidades devem ser levadas em conta em cada atividade?

Quando o foco do professor é que os alunos desenvolvam a capacidade de escrever um bom texto, é preciso levar em conta as dimensões discursiva e textual: para quê e para quem dizer; o que dizer, como dizer. A dimensão discursiva diz respeito às relações entre o texto e o contexto em que ele é produzido. Esse é o ponto de partida, que vai orientar todo o trabalho linguístico de escrita. Um texto adequado deve expressar as intenções e os objetivos do produtor de modo a fazer sentido para um determinado leitor, num determinando contexto. Para isso, é preciso ter clareza quanto a: a) os objetivos que se quer alcançar: avisar, pedir, fazer rir, reclamar, convencer, informar etc.; b) quem é o destinatário: criança? adulto? conhecido? desconhecido? os pares (colegas)? uma autoridade? do que sabe esse leitor? o que é preciso dizer para que ele entenda e receba bem o texto?; c) onde o texto vai circular: na sala de aula? nos espaços da escola? na comunidade escolar? entre as famílias dos alunos? na comunidade localizada no entorno da escola?; d) qual o gênero mais adequado: história? carta? aviso, instruções, requerimento? abaixo-assinado?; e) qual o suporte: cartaz? livro? folheto?

Quanto à dimensão textual, é preciso planejar o que se vai dizer e como se vai organizar o texto: qual o assunto principal, por onde começar, como subdividir o assunto, como terminar. Durante o planejamento, durante a escrita e depois da escrita é preciso rever, avaliar e reescrever: está claro para o leitor pretendido? As ideias estão organizadas de modo que o leitor perceba a relação entre elas? O texto está completo? O que está faltando?

Por exemplo, me lembro do reconto da história dos Três Porquinhos feito por alunos do primeiro ano. Um menino reconta a história mais ou menos assim: “Aí os dois porquinhos foram para a casa do irmão. Mas o lobo mau caiu no caldeirão de água quente. Ele queimou o rabo.” Não dá para começar essa história assim. Se você quer contar essa história, por exemplo, para uma criança que não a conheça, tem que começar com “era uma vez três porquinhos, irmãos…”. Tem que dizer que eles eram perseguidos pelo Lobo Mau, que eles fizeram casas para se proteger, que as casas eram diferentes, o que fez o Lobo Mau, por que dois porquinhos foram para a casa do terceiro irmão etc. Da maneira como o menino fez, os fatos da história não estão bem ordenados (o que aconteceu primeiro, o que veio depois), faltam informações e ligação entre as informações. No caso das narrativas, tem que haver uma correlação de tempo e de espaço entre os fatos relatados. Para ensinar a produzir textos escritos, o professor deve considerar isso e tratar disso com os alunos. Inclusive para fazer um diagnóstico. A criança tem problema na ordenação, na organização, na complementação de informações, na articulação entre as partes do texto? O que está faltando no texto desse aluno para fazer sentido a um interlocutor que está longe, situado em outro contexto?

Não se pode parar na definição das condições de produção (a dimensão discursiva) nem na organização do conteúdo do texto. Isso não é suficiente. O mais difícil é “botar as ideias no papel”. Então o professor tem que investir no trabalho linguístico propriamente dito. Primeiro: em que registro de linguagem o texto deve ser escrito – formal ou informal. É preciso considerar o uso de recursos que indicam a coesão entre as partes do texto. A chamada coesão nominal – pronomes (ele, isso, aquele etc.) e expressões marcadas com artigo definido, como “o terceiro porquinho”, “a rainha má”), e a coesão sequencial – advérbios, conjunções, expressões como “na hora que”, “dentro da casa”, “por causa disso”). É preciso cuidar, também, da estruturação das frases, da concordância nominal e verbal, da pontuação, da ortografia. Há maneiras muito boas de trabalhar isso: uma é discutir com os alunos essas questões numa produção coletiva, em que eles falam e o professor escreve no quadro (na lousa), comentando as sugestões dadas, sugerindo alterações; outra é fazer a revisão coletiva do texto de um aluno; outra possibilidade é pedir que os alunos discutam seus textos em dupla ou em trios, orientando-os sobre o que deve ser considerado.

 

Sobre os livros didáticos, quais as principais mudanças nos conteúdos e nas suas formas?

Eu estive envolvida, de 2000 a 2016, no processo de avaliação de livros didáticos do PNLD. O movimento que a gente percebe é que, à medida que a discussão acadêmica ia avançando e novas teorias iam se solidificando, esse conhecimento acadêmico ia fundamentar os critérios de avaliação das coleções didáticas e os livros iam se adequando a esses critérios. Na produção de texto, quando a gente começou a avaliar, o modo de trabalhar se reduzia a uma demanda, como: “Escreva um texto sobre uma aventura na lua” e depois uma recomendação, como: “solte sua imaginação”. E acabou. Atualmente, toda a discussão da linguística de texto, da análise do discurso, das teorias da enunciação, que foram fundamentando os critérios de avaliação do PNLD, fez isso mudar bastante. Até 2016, quase todos os livros, quando tratam da produção de texto, propõem ao aluno definir para quem vai escrever, por que vai escrever, o que quer escrever, em qual contexto o leitor vai ler. Isso que a gente chama de condições de produção já vem em um quadrinho para levar o aluno a pensar. Algumas coleções trazem uma orientação temática, ajudando o aluno a buscar e selecionar informações sobre o que vai escrever e, depois, a organizar o conteúdo do texto, cuidando da coerência e da coesão.

O que as coleções didáticas ainda não fazem, como deveriam fazer, é trabalhar a sintaxe do texto e a pontuação do texto, no processo de escrita propriamente dito. Mas temos que reconhecer que isso é muito difícil para um autor de livro didático, porque, além de uma orientação geral, que o livro poderia trazer, é necessária uma atenção particular a cada aluno, que só é possível na relação do professor com sua turma.

Uma última etapa, que também precisa ser bem orientada, é a revisão. Os livros didáticos, em geral, dizem simplesmente “reveja a pontuação”, “preste atenção na ortografia”, “verifique se usou letra maiúscula depois do ponto final”. Esse tipo de recomendação não tem efeito útil, não ajuda o aluno a rever texto nem a aprender o que não sabe.

De qualquer maneira, de 1996, quando o PNLD começou, analisando cartilhas, até hoje, quando estão na sala de aula as coleções analisadas em 2016, muita coisa mudou e melhorou muito. Os livros têm maior possibilidade de apoiar o professor e orientá-lo no sentido de fazer um trabalho mais qualificado.