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O ensino bilíngue nos primeiros anos de escolas públicas da educação básica e como a alfabetização é abordada nesse contexto


     

Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 16:24:00

 
Por Bruno E. Campoi
 
Em uma aula voltada para o ensino dos elementos que compõem os arredores da escola, a professora Ranice Dulce Trapp, da Escola Básica Municipal Dr. Amadeu da Luz, em Pomerode (SC), pergunta se seus alunos sabem por que uma placa com a letra “E” cortada significa que é proibido estacionar. Logo ela explica que a letra vem da palavra “Estacionar”, então pergunta se eles saberiam dizer qual letra teria uma placa dessas na Alemanha, onde a palavra “Parken” significa “Estacionar”. A escola em que ela leciona faz parte de um grupo incomum no contexto brasileiro: o de escolas públicas que oferecem ensino bilíngue.
 
Apesar da ausência, no Brasil, de uma legislação que regulamente de maneira exata o que é a educação bilíngue, existem certos consensos entre os pesquisadores a respeito do que é necessário ou não em um currículo desse tipo. “Eu acredito que o principal é que seja um currículo em que duas línguas sejam usadas como meio de instrução. Então o aluno, nesse currículo, não só aprende uma segunda língua, mas ele utiliza também essa segunda língua para aprender sobre outras áreas do saber”, afirma Daniele Blos Bolzan, doutora em Letras pela UFRGS e professora na pós-graduação em Educação Bilíngue e Cognição na Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (RS).
 
Dentre as escolas públicas no Brasil que consideram seu tipo de ensino como bilíngue, destacam-se aquelas chamadas “escolas de fronteira” (saiba mais), criadas na região fronteiriça do país, e que têm como finalidade a promoção da integração regional. Além delas, também se sobressai o caso da cidade do Rio de Janeiro, que, na metade do ano de 2018, possuía 27 unidades de educação com aulas bilíngues em inglês, espanhol, francês ou alemão, atendendo a cerca de sete mil alunos (saiba mais). Além desses casos excepcionais, também são encontradas escolas desse tipo em algumas outras cidades brasileiras, principalmente naquelas com forte presença de imigrantes ou seus descendentes, assim como ocorre em Pomerode.
 
A Escola de Educação Básica Dr. Theodureto Carlos de Faria é uma das muitas escolas de fronteira que oferecem ensino bilíngue. Localizada no município de Dionísio Cerqueira (SC), ela oferece, desde 2005, o ensino em português e espanhol, atendendo no ano de 2018 cerca de 70 alunos do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Segundo Dayani Machiavelli, coordenadora pedagógica da escola, uma das maiores mudanças que ocorreu inicialmente foi a ampliação da grade de horários com a implantação do ensino integral, o que permitiu que projetos de ensino bilíngue fossem desenvolvidos sem nenhum prejuízo do aprendizado das outras disciplinas.
 
As aulas que trabalham a língua espanhola nessa escola são desenvolvidas por professores que atuam em um esquema de intercâmbio: durante dois dias da semana, professores da Escola nº 604, da cidade de Bernardo de Irigoyen, na província argentina de Misiones, vêm realizar o projeto na escola brasileira. São feitas três aulas em cada um dos dois dias sobre os mais variados assuntos, com o uso da língua espanhola e de elementos, como diálogos, músicas, brincadeiras, filmes e teatros.
 
Alfabetização e biletramento
 
Existe um mito de que somente pode ser considerado bilíngue quem fala perfeitamente as duas línguas, em todos os seus domínios. No entanto, essa visão é equivocada ao considerar a língua como imutável e isolada, quando, na verdade, ela é dinâmica, explica Selma Moura, Mestre em Linguagem e Educação, e professora de pós-graduação em educação bilíngue no Instituto Singularidades (SP), no Instituto Superior de Educação de Ivoti (RS) e no Instituto Evangélico de Novo Hamburgo (RS). Segundo a professora, “a definição de quem é bilíngue atualmente é mais inclusiva e considera o sujeito que usa duas ou mais línguas em sua vida. Esse uso pode se dar nas quatro habilidades (compreensão, fala, leitura e escrita) ou em uma combinação de qualquer uma delas, e em qualquer nível”.
 
Selma nos explica que as visões e as práticas da alfabetização realizadas em escolas bilíngues não são uniformes. Sendo assim, nem sempre as crianças aprendem o sistema alfabético e suas convenções de uma forma que pode ser considerada como bilíngue. De acordo com ela, em algumas, a leitura e a escrita em língua portuguesa são trabalhadas nos primeiros anos e mais tarde as aulas são realizadas em uma segunda língua. Nesses casos, não se pode falar em “alfabetização bilíngue”. Em outras situações, a base alfabética é pensada nas duas línguas desde o ensino infantil. Dessa forma, por exemplo, quando a escrita vai ser desenvolvida com as crianças, o conhecimento que já vinha sendo construído sobre a segunda língua pode ser usado para que seja realizada uma “alfabetização bilíngue”, mais conhecida pelo termo “biletramento”.
 
É dessa forma que acontece na escola Amadeu da Luz, já que lá o ensino bilíngue é ofertado desde a educação infantil. Assim, durante a alfabetização, as crianças já têm um interesse natural em comparar certas estruturas presentes nas duas línguas, o que pode ser aproveitado pelo alfabetizador. Ranice descreve uma dessas situações: “Vamos supor que a professora está problematizando no quadro como se pode escrever a palavra ‘macaco’ e quer saber que letras compõem a sílaba ‘MA’ (...). Alguém vai dizer que é o ‘M’ e o ‘A’. Quando a gente vai pra sala de alemão trabalhar contos e em algum deles apareceu um ratinho, que, em alemão, se chama ‘maus’, aí a professora pergunta como é que se escreve a palavra 'maus'. A criança vai dizer que é o ‘M’ e o ‘A’, e que são os mesmo ‘M’ e o ‘A’ de ‘macaco’”.
 
Entre mitos e desafios
 
A alfabetização em duas línguas depende de características do funcionamento de cada idioma. Selma explica que “o processo de construção da escrita pelo aluno pode ser bem diferente, a depender das línguas de seu repertório”. Se a língua materna e a segunda língua usam sistemas de escrita parecidos, com alfabetos próximos, a comparação entre elas é facilitada, assim como o seu processo de ensino. Dessa forma, para as crianças que falam português, se torna mais complicado o processo de biletramento que envolva línguas que usam sistemas de escrita diversos, como o japonês, o mandarim e o coreano.
 
Por depender de um repertório anterior, “a alfabetização bilíngue traz desafios para o professor, que deve conhecer bem seus alunos e suas línguas e propor estratégias que lhes permitam lançar mão de todo seu conhecimento sobre a escrita para compreender e utilizar a representação da fala”, diz Selma. Segundo ela, se o ensino é feito de forma coerente desde os primeiros anos, a criança que já tem um conhecimento na segunda língua adquirido por meio do contato com histórias, cantigas e brincadeiras buscará naturalmente representar isso por meio de desenhos e, posteriormente, de tentativas de escrita.
 
Outro mito é o de que o aprendizado nas duas línguas pode sobrecarregar as crianças. Para Daniele, isso vem de um olhar do universo adulto que pensa no ensino como uma carga acadêmica quando, na realidade, a aquisição de duas línguas simultaneamente por uma criança se dá de forma natural se isso acontece desde cedo. “Eles vão fazer, por exemplo, a hora da rodinha em inglês, a hora do lanche em inglês, a organização dos materiais com a mediação da professora que fala inglês. Então isso vai acontecendo de forma natural. E eles ingressam no Ensino Fundamental com essa vivência já de educação bilíngue e vão sendo então alfabetizadas nas duas línguas porque são as duas línguas que eles conhecem como sendo as duas línguas da escola”, explica.
 
Na visão de Selma, um dos maiores desafios da alfabetização em contextos bilíngues é a formação dos professores: “(...) nossa experiência como educadores foi marcada por uma visão muito estática e compartimentalizada de línguas e de conteúdos, e não tivemos a chance de aprender mais sobre educação bilíngue, biliteracia e outros temas correlatos”. Daniele, por sua vez, aponta que essa é uma área que ainda carece de pesquisas e de dados empíricos que possam guiar a forma como se ensina em instituições de ensino bilíngues. Para a professora, as escolas vão descobrindo na prática a melhor forma de ensinar, processo que poderia ser facilitado por mais trabalhos acadêmicos de compartilhamento de experiências.