Herança

Crônica da edição 51 do Letra A, por Ana Elisa Ribeiro


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:06:00

 
Ana Elisa Ribeiro
 
“Lisa, será que você pode dar uma passada aqui para ver o que você quer levar?”, diz minha avó ao telefone, com a voz séria e sem embargo.
 
Adiei aquela ida o quanto pude, mas tinha de ir. Era um chamado cheio de consideração, afinal, eu fora a leitora mais voraz daqueles livros, naquelas estantes de aço cinza, naqueles tempos de adolescência. Ela não sabia, mas o fato de emprestar, de mostrar, de falar um pouco sobre cada história, de me seduzir com as promessas de um livro eram a atitude de uma mediadora, de uma curadora, de uma amorosa conquista da leitora que estava por vir. Uma leitora contumaz, que não se esqueceria nunca mais de que a leitura é parte da vida, tal como comer, dormir e trabalhar. 
 
Desci a rua sem pressa. Ensaiei o respeito com que entraria no quarto dela. Fiz e refiz, em minha cabeça, o trajeto da entrada até o andar de cima, onde ela instalara sua biblioteca, juntamente com sua cama, seu armário de roupas, uns tênis de corrida, as barrinhas de cereal. O dia estava bonito, embora o momento não fosse dos melhores. Quem se imagina em uma situação como essa? Àquela altura? Nunca. Desci a rua pensativa, sem chorar, mas cheia de uma cerimônia que jamais tive enquanto ela era viva. 
 
Bati a campainha. Alguém mexeu na fechadura, um barulho de chaves chacoalhou minha alma. É mesmo verdade isto? O portão eletrônico se abriu lentamente. Entrei pela garagem, desviando-me do retrovisor do carro. Cumprimentei as pessoas à porta, todas muito sérias, mas já resignadas. Há males para os quais não há solução. Adentrei a sala de baixo, onde fitei uma outra estante de livros, maior, de madeira, a estante de minha avó, onde se misturavam a TV, os porta-retratos e os volumes de capa dura. Subi a escada à direita, já com vontade de estar apenas sonhando. Passei por outro corredor, onde mais uma estante antiga de livros ocupava um canto. Entrei no quarto que era dela.
 
A janela aberta deixava ver um dia aparentemente comum lá fora. As estantes, três ou quatro, lado a lado, mostravam centenas de lombadas coloridas muito bem organizadas. O armário de roupas tinha uma das portas aberta, sinal de que alguém estivera ali a mexer. Dali não quero nada, pensei. Não há nada mais triste do que levar as roupas dela, ainda com seu perfume, para habitarem outro lugar. E com os livros? O que os livros carregam dos seus donos, de seus leitores? Trazem deles algo da alma? Dos olhos, das eventuais lágrimas caídas? Fotografias, bilhetes, anotações, papeis de propaganda, de balas, de chicletes? 
 
Passei a observar, respeitosamente, as estantes. O eco das palavras de minha avó me assombrava: você pode dar uma passada aqui para ver o que você quer levar? Não era questão de querer. Era uma necessidade. Ninguém deseja estar no meu papel. Ninguém quer descer a rua a fim de se tornar o depositário dos livros de um ente querido. Mas é necessário tomar essa atitude para evitar que as obras sejam queimadas, jogadas no lixo, destruídas, como se nunca tivessem tido importância. Quem é chamado a fazer estes resgates? Outros leitores, evidentemente. Outras pessoas capazes do amor aos livros e à literatura. Outros seres capazes de compreender a relação das pessoas com suas leituras, base de suas formações, elementos de sua própria existência. Era uma tristeza, mas também uma imensa honra ser chamada a fazer a seleção dos volumes que seriam levados dali, antes do desmonte das estantes, da decomposição do quarto. Os livros eram importantes para ela e para mim. Ela os emprestara à sobrinha mais velha, que os lera com o ímpeto curioso de quem se apaixona pelas letras. Tais livros, uma parte apenas dos que ali figuravam, ainda sem novo dono, eram, afinal, elos que uniam duas pessoas, que faziam pontes, que foram assunto de muitas conversas, que ajudaram a construir respeito, amor e amizade. Não eram apenas objetos neutros, como poderiam parecer, à primeira vista. Eram laços. 
 
Aproximei-me das estantes. Toquei cada lombada com delicadeza. Reconheci, pela cor e pelo tamanho, vários volumes lidos. Tentei compreender a lógica da organização das obras ali reunidas ou separadas. Fui, cuidadosamente, retirando uns volumes das estantes e empilhando na cama, para que pudesse decidir o que levar. Esta operação durou quase uma tarde e poderia ter sido mais. Minha ansiedade de ir embora, de sair daquela situação, foi maior que meu desejo pelos livros. As imagens – visuais e auditivas – da tia leitora, tão jovem e efusiva, a me mostrar cada capa e a fazer resumos sedutores dos enredos tornavam minha estada ali muito difícil, especialmente quando eu era tomada por uma sufocante vontade de chorar. Era saudade. Tristeza. Afeto.
 
Saí do quarto com uma dezena, talvez, de volumes nas mãos. Abracei-os, para que não caíssem, mas não era apenas esse o motivo do abraço. Desci as escadas para pedir uma sacola. Não me lembro mais do que se seguiu, tal era minha vontade de chegar em casa. Minhas estantes altas receberiam a herança precoce. Não eram roupas, nem joias, nem dinheiro, nem móveis. Eram os livros que compartilhamos ao longo de vários anos, livros que nos uniram e nos aproximaram, em conversas que durarão para sempre. As pessoas ficam bem menos ausentes na metonímia com os livros que foram seus, lidos e compartilhados, durante e depois da vida.