Igualdade na diferença

A literatura como porta de entrada para abordar a diversidade nas escolas


     

Letra A • Quarta-feira, 27 de Julho de 2016, 10:00:00

 

Por Poliana Moreira

A escola é, para muitas crianças, o primeiro lugar onde experimentam o convívio com pessoas de culturas, raças e religiões diferentes das suas. Além desse acesso à diversidade pelo contato com os colegas, é papel da escola proporcionar outras maneiras de conhecer, respeitar e valorizar as diferenças humanas em seus variados aspectos, como os sociais, culturais, ambientais e regionais. A pesquisadora do Ceale Aracy Alves Martins defende que a literatura apresenta enorme potencial para se desenvolver esse trabalho com a diversidade, já que, por ser uma arte, ela é capaz de dialogar com as pessoas por meio da sensibilidade. “A literatura toca mais fundo, mexe muito com a gente e nos desloca de um lugar estabelecido”, reflete Aracy.

Foi com o intuito de legitimar e garantir que a diversidade fosse tematizada nas salas de aula que algumas leis foram criadas. Um importante exemplo é a lei federal 10.639 de 2003 – alterada em 2008 para lei 11.645 –, que trata a literatura, junto à educação artística, como um dos principais eixos para se trabalhar nas escolas o ensino da história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas do país. “A literatura não pode ser vista a serviço de alguma coisa, mas é possível trabalhar livros que, ao mesmo tempo, formam o leitor literário e abordam essas questões”, reflete a professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Daniela Amaral, que estudou em seu doutorado os kits de literatura afro-brasileira distribuídos nas escolas da rede municipal de Belo Horizonte. Durante sua pesquisa, Daniela observou a ampliação dos temas presentes nos kits, que passaram a ir além daqueles contemplados pela lei. “Pude observar que eles estão incorporando questões de gênero, que discutem as relações de papéis femininos e masculinos”, relata a pesquisadora.

Uma política nacional recente voltada para a construção de acervos diversos é o PNBE Indígena, que selecionou obras de literatura sobre os povos originários do Brasil, para serem distribuídos da Educação Infantil ao Ensino Médio nas escolas públicas. A pesquisadora do Ceale Maria Gorete Neto, uma das coordenadoras da seleção, destaca a importância dessa política. “Quando as pessoas não entendem o que é a realidade indígena, que no nosso país é algo muito evidente, ocorre um movimento muito grande de violência contra esses povos”. Justamente pela existência de visões discriminatórias, Maria Gorete ressalta que é necessário ter cuidado na seleção de obras literárias sobre a temática. “O etnocentrismo é parte do ser humano, a gente sempre olha para o outro com um estranhamento, achando que a minha cultura é boa e a do outro é ruim. E existem muitas obras com esse ponto de vista”, alerta Maria Gorete.

Menos esteriótipos, mais identificação

Para que, de fato, esses acervos diversos possibilitem construir igualdade, e não preconceitos, é importante atentar para critérios como a forma de representação dos personagens e seu papel na história. “Temos a questão de posicionamento de personagens negros como protagonistas, mostrando eles de forma positiva, com valorização de elementos da cultura africana e da cultura afro-brasileira”, ressalta Daniela Amaral.

Promover o conhecimento da realidade de grupos retratados é outro ponto-chave. “As obras que, por exemplo, apresentam o indígena como aquele que só pode andar de tanga, usar cocar, fazer dois risquinhos no rosto e fazer “uh-uh” não seriam adequadas para um trabalho cuja temática é literatura indígena”, ressalta Maria Gorete. Em vez dessa visão caricatural, o PNBE Indígena valorizou obras que promovessem movimentos de aproximação entre diferentes grupos sociais e mostrassem que é possível encontrar semelhanças entre eles.  “Espera-se que elas apresentem o indígena como uma pessoa que vive em seu cotidiano”, comenta Maria Gorete.

Muitos livros literários que trazem a diversidade como tema partem do cotidiano das crianças, para daí ampliar a reflexão, mostrando como todos devem ser respeitados e valorizados em suas diferenças. Aracy Alves Martins exemplifica, comentando a obra O cabelo de Lelê, de Valéria Belém, que traz reflexões sobre autoestima e identidade envolvendo a relação de uma menina com seus cabelos. “Houve um momento em que havia um ideário do embranquecimento e em que os negros queriam alisar o cabelo, para ter o cabelo como o dos brancos. Felizmente hoje, a partir das lutas do movimento negro e do fortalecimento da identidade negra, isso fez com que o afrodescendente busque o seu próprio cabelo e não o cabelo do outro”, comenta a pesquisadora do Ceale.

Livros didáticos e de literatura infantil de décadas anteriores eram caracterizados pela ausência de representação de alguns grupos ou até mesmo uma diminuição deles, observa Aracy. “Os heróis da obra eram todos muito brancos, arrumados, bonitos e europeus. O leitor não se sentia identificado com aqueles personagens”, ressalta a professora. Para a pesquisadora, falar de um acervo literário diverso vai além da oportunidade de conhecer outros povos; passa também pela identificação do leitor e dos grupos a que ele pertence. “Ler uma obra em que é possível se identificar e também identificar pais, irmãos e sua família faz com que o leitor pense: ‘Eu estou nessa obra, existe alguém que parece comigo, então eu estou presente ali’.”