Leitura digital: uma aproximação entre tecnologia e alfabetização | parte 3


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 13:28:00

O governo Bolsonaro lançou duas ações (o programa Conta Pra Mim e o aplicativo Grapho Game), que dizem incentivar a leitura digital. Quais os pontos positivos e negativos dessas propostas? Há chances de elas passarem por modificações, para serem aplicadas no Brasil?


Infelizmente essas duas propostas vão muito contra todo o nosso repertório de pesquisa, de estudos acerca da alfabetização, da literatura infantil. São duas propostas que foram construídas sem nenhum diálogo com os especialistas, inclusive os especialistas fora da academia que estão trabalhando com alfabetização e letramento no Brasil. Por exemplo, o Grapho Game foi feito com especialistas na Finlândia, aí a gente tem grandes diferenças nas características do finlandês em relação ao português. Mas, independente disso, a principal questão, por exemplo, do Grapho Game, é que ele tem uma visão muito reducionista do que é ser leitor. Eu nem digo que o Grapho Game é um aplicativo que promove a leitura; ele se concentra no desenvolvimento de uma habilidade, que é a consciência fonológica, a relação entre os sons e as letras. Então, é um dentre muitos aspectos que compõem o repertório que a criança vai ter para desenvolver a capacidade de decodificar o texto escrito. É uma visão muito básica de alfabetização. A gente já sabe que hoje decodificar o texto é o primeiro passo, mas pra você ser um indivíduo letrado, tem a questão do alfabetismo funcional e uma série de [outras] questões já muito trabalhadas na área da educação. Eu não vejo problema em ter uma ferramenta que dê suporte a essa habilidade específica. O problema é que se concentrou todos os esforços só nesse aspecto. E sabemos que o desenvolvimento da leitura está fortemente relacionado ao contexto sociocultural da criança. O Grapho Game é uma coisa mecânica, que usa uma visão de gameficação muito mecânica e que não contextualiza a leitura na vida da criança. Então não é um aplicativo que vai promover a leitura; ele promove simplesmente a consciência fonológica, que pode ajudar as crianças a se alfabetizarem, mas só isso está longe de ser suficiente. Aí a gente tem o Conta Pra Mim, que é um projeto que vai ter uma série de matérias digitais para promover o que foi chamado de “literacia familiar”, que é a promoção de atividade de letramento e alfabetização em casa, dentro do contexto familiar. Porém, eu acho que promover essa apropriação da leitura na família é, sim, muito importante, mas a maneira como foi feita não leva em conta a realidade brasileira. Novamente, esse é também um projeto que foi feito com base nas pesquisas principalmente norte-americanas, que vão ter uma realidade muito diferente da brasileira, porque é muito difícil você pedir para uma família de pessoas com baixo nível de alfabetização e letramento, para que elas deem suporte na alfabetização dessas crianças. Elas não têm esse domínio da linguagem [específica] para poder realizar essas atividades. Além disso, a qualidade dos materiais é muito pobre em termos artísticos e estéticos. O que se fez foi se apropriar de um repertório de textos em domínio público e sem nenhum diálogo. O Brasil é um dos países que mais se destaca no mundo em termos de literatura infantil. Nós temos escritores e ilustradores brasileiros que já ganharam os maiores prêmios. O Nobel da Literatura Infantil, o prêmio Hans Christian Andersen, o Brasil já ganhou três vezes e ninguém fala disso, todo mundo só fala que o Brasil nunca ganhou um Nobel de Literatura. Então nós temos muitos artistas, muitos ilustradores, muitos editores que estão fazendo a melhor literatura a que se tem acesso no mundo. A gente está lado a lado com qualquer país de primeiro mundo em termos de produção e qualidade literária. E aí o governo [Bolsonaro] foi fazer esse material e não teve nenhum diálogo, não trabalhou com essa nossa riqueza de criação artística, e criou um material muito empobrecido em termos de linguagem poética, de linguagem visual, de técnica, de qualidade artística de ilustração. Infelizmente era um projeto que teria um potencial enorme. Contudo, a sua realização foi muito pobre e lamentavelmente o resultado está muito aquém do que o Brasil merece, do que as pessoas poderiam ter acesso se houvesse essa consulta a quem já está fazendo literatura infantil e juvenil no Brasil. Infelizmente, foi um investimento muito alto que novamente não alcançou o potencial que poderia ter alcançado.

 

Como funciona o processo de distribuição de literatura digital nas escolas do Brasil?

É um processo um pouco difícil porque não temos um sistema de acesso e de distribuição de literatura digital nas escolas ou mesmo nas bibliotecas públicas. Em outros países mais desenvolvidos e com mais recursos financeiros investidos em bibliotecas, já era comum a pessoa poder baixar um aplicativo e ler livros digitais pela conta da biblioteca sem ter que pagar. Aqui no Brasil a gente ainda não tinha esse sistema. Mas, ao longo da pandemia, algumas bibliotecas públicas o adotaram. Em São Paulo, as bibliotecas públicas agora têm um aplicativo. E tem também serviços privados, empresas que oferecem esse serviço de bibliotecas digitais. Inclusive, durante a pandemia, aumentou muito a procura por essas plataformas. Várias escolas e prefeituras passaram a adotar esse serviço que não adotavam antes, gerando um grande crescimento. Houve, inclusive, uma parceria de algumas dessas empresas de dar acesso gratuito a escolas públicas que não tinham a condição de contratar esse serviço durante a pandemia, pelo menos por um tempo determinado. Aumentou, sim, o acesso a obras digitalizadas. A própria discussão e o conhecimento sobre a literatura digital ainda é muito incipiente. Poucas pessoas conhecem. É um trabalho muito grande ainda de sensibilização para que as pessoas saibam que existe, que muitas vezes é gratuito. Então, tem pouco uso nas escolas ainda. Mas, sem dúvida, aumentou, inclusive, aumentou a produção de e-books pelas editoras, [já] que muitas também não estavam preparadas. As pesquisas mostram que, por exemplo, o norte do Brasil é a região onde as pessoas mais leem e-books, mais têm acesso a e-books. Saiu agora recentemente uma pesquisa de que eu fiz parte que se chama “O Brasil que Lê”, e a gente mapeou isso e vimos que o sul e o sudeste é onde a infraestrutura tecnológica é maior, então há mais computadores, mais projetos de leitura nas escolas, nas casas. Porém, nesses lugares há muito preconceito em relação ao uso da tecnologia para leitura. Já nas regiões onde o acesso é muito mais difícil para o livro impresso, as pessoas têm uma visão menos carregada do uso da tecnologia e, mesmo tendo menos recursos tecnológicos, fazem mais uso desses recursos para ler e-books e para ler de maneira digital. Desse modo, vemos as pessoas se apropriando, nessas regiões onde há mais dificuldade de acesso, da tecnologia de uma forma mais ativa do que nas regiões, inclusive, mais ricas do país.

 
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