Leituras adolescentes
Crônica | Letra A 56
Letra A • Quarta-feira, 26 de Outubro de 2022, 01:48:00
Por Paulo Bernardo Vaz*
Nasci e passei a infância em Divinópolis, onde aprendi a ler aos 7 anos na classe de D. Terezinha Gomes Fernandes. Leitor neófito, me esbaldava no “Gurilândia”, encarte dominical do Estado de Minas. Aos 8 anos ganhei, de meu irmão Zé, o livro “Vamos crianças, vamos a Jesus”. Foi minha primeira frustração de leitor, pois eu queria que ele comprasse a oferta uma volumosa e encadernada biografia de São Paulo. O Zé deve ter achado que era São Paulo demais para seu irmão menino Paulo.
Aos 12, 13 anos, compensei a frustração infantil, mergulhando de ponta cabeça nos romances que o mesmo Zé meu irmão recebia de um Clube do Livro. Tirei a caixola da miséria. Ágil e bravamente lutei esgrima nos romances de capa e espada, viajei pelos séculos passados, presentes e futuros, e debulhei-me em lágrimas com a Sra. Leandro Dupré, incorporado em sua família paulistana na qual “Éramos seis”.
Adolesci em Belo Horizonte. Ao mudar-me para a metrópole, foi fácil localizar o caminho de tijolos amarelos que me levava diretamente a um castelo de Oz na Praça da Liberdade: a Biblioteca Pública. Passei a circular livre, leve e solto pelos vastos espaços do ondulado e envidraçado edifício. Sempre muito cioso com organização e atento às recomendações de “não recolocar os livros na estante”, eu tinha uma vontade danada de recolocar, sim, a obra consultada no espaço permanecido vazio entre dois livros de onde retirara o volume. Melhor não, deitava-o obedientemente na mesa ou nas beiradas da estante. E seguia adiante sem medo das bibliotecárias, que me emprestavam mais de um livro simultaneamente.
Atravessava a cidade feliz da vida com meu butim, tesouro honestamente emprestado. Em casa, me isolava num canto de sofá, numa cadeira do alpendre ou em minha própria cama, buscando um faixo de luz para mergulhar ora em um, ora em outro livro. Lia-os com a avidez de leitores de folhetins do século XIX.
Aos 17 anos, um amigo de minha idade, Demerval de Oliveira – chamado Dedé – iluminou minha vida ao me apresentar Fernando Pessoa. Abriram-se para mim novos horizontes. Como numa quadrilha drummondiana, Fernando levou a Carlos que levou a Emílio que levou a Cecília que levou a Rainer que levou a Rabindranath que levou a Walt que me levou a todo mundo.
Além de assíduo frequentador da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, eu fazia o circuito das livrarias no centro da cidade. Itatiaia, a maior e mais bem fornida, na rua da Bahia. Não longe ficava a Oliveira Costa. A Rex, na Praça Sete. A Agir no Edifício Sulacap. Nelas, eu nada comprava; saracoteava, folheando edições antigas e novos lançamentos, sob o olhar complacente do livreiro. Quando foi aberta a Livraria do Estudante no subsolo de uma galeria na Tupis com Espírito Santo, encontrei meu point. Lá comprei e me abalei com o “Tremor de Terra” de Luiz Vilela, os contos fantásticos de Murilo Rubião e muitas outras prosas surpreendentes de um ror de autores em verdadeira e maravilhosa epifania.
Tenho, enfim, de revelar uma ocorrência de censura em família. Já deixando a adolescência, comprei “Justine” de Sade. Em casa deixava o livro deitado à minha cabeceira, pois meus pais aprovavam incondicionalmente minhas próprias decisões para minha formação intelectual. Como num passe de mágica, o livro desapareceu. Desconfiei de um irmão censor auto-instituído, mas não empreendi nenhuma busca. Comprazia-me pensar no quanto as aventuras lúbricas de Justine o estariam perturbando. Esta dúvida permaneceu para sempre: teria o livro ido para o fogo ou servido para incendiar, na calada da noite, a imaginação do moralista surrupiador do Divino Marquês?
Do final da adolescência para cá, meu acesso à boa literatura foi cada vez mais ampliado, intensificado e aprimorado. Mais contaria se coubesse no Letra A, onde deixo registrada minha declaração de eterna gratidão e carinho in memoriam de D.Terezinha, que me ensinou a ler e escrever, e de meu pedagogo informal Dedé que me forneceu as armas e os instrumentos que qualificaram minhas leituras para todo o sempre. Amém.
*Professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais.