Leituras e escritas sempre sob um olhar contextualizado

Em entrevista ao Letra A 53, a professora aposentada da UFMG Maria Lúcia Castanheira revisita alguns dos temas sobre leitura e escrita que fazem parte de sua trajetória profissional


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Agosto de 2020, 17:11:00

 
Com sua formação na área da educação iniciada nos anos 1980, Maria Lúcia Castanheira — para seus colegas e alunos, Lalu — pode dizer que é testemunha ocular do desenvolvimento dos estudos sobre letramento, seu principal tema de pesquisa e trabalho em sua carreira  como professora da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, iniciada em 1990, ano de fundação do Ceale.
 
Sempre com um olhar que contextualiza e amplia as perspectivas do que analisa, a professora da FaE ressalta que devemos pensar em “letramentos” no plural, posto que as pessoas aprendem sobre a escrita e a utilizam em vários espaços sociais, não apenas dentro da escola. Em suas pesquisas, parte de uma perspectiva etnográfica: “acho que adotar essa perspectiva é interessante porque ela possibilita, no meu entendimento, uma compreensão mais aprofundada da complexidade de determinadas situações em que a escrita é utilizada pelas pessoas e o entendimento dos limites do nosso próprio conhecimento sobre o assunto estudado”.
 
Nesta entrevista ao Letra A, convidamos Maria Lúcia a revisitar e discutir alguns dos temas sobre leitura e escrita que fazem parte de sua formação e trajetória profissional. 
 
Por Natália Vieira
 

O que você destaca sobre a pesquisa que realizou no final da década de 1980 em que você examinou como crianças das camadas populares seriam introduzidas no mundo da escrita em seu meio familiar e na escola?

 
Nesse estudo, busquei conhecer como se dava o engajamento das crianças em práticas de leitura e escrita antes de entrarem na escola e logo após a entrada na primeira série do grupo escolar. O que pude observar e o que foi demonstrado nesse estudo, orientado pela professora Magda Soares, era que as crianças tinham diversas oportunidades de fazer uso da escrita e de ver outras pessoas utilizando a escrita graças à mediação dos seus familiares e amigos. Eu encontrei, por exemplo, meninas que já frequentavam a escola que ensinavam os irmãos mais novos que estavam entrando na primeira série. Pais que buscavam oferecer recursos para os filhos lerem, aprenderem o ‘beabá’ antes de entrarem para a primeira série. O contexto econômico no qual o estudo foi desenvolvido era muito pobre. Era em um bairro que estava fazendo a transição de uma economia rural para pertencimento à zona urbana de Belo Horizonte. 
 
É interessante destacar que a pesquisa, que foi minha dissertação de mestrado, recebeu o nome “Entrada na escola, saída da escrita” porque concluímos que a escola adiava muito o trabalho com o ensino da leitura e da escrita. As crianças chegavam à escola com muito desejo de aprender, já conhecendo várias letras, lendo palavras, fazendo os exercícios que os irmãos mais velhos tinham ensinado, muito parecidos com aqueles que eram feitos na escola. Então, era como se os tentáculos da escola chegassem às casas das crianças antes mesmo de elas irem para a escola. A visão que elas tinham da escrita [na escola] era muito do ‘beabá’, ‘babebibobu', de copiar e fazer lacinhos e desenhos com as letras. Eu entrevistei várias crianças antes de entrarem para a escola, acompanhando o que faziam em seu dia a dia fora da escola, e depois no período em que elas já haviam ingressado na escola. Eu perguntava: “Você entrou então pra primeira série?”. Elas falavam: “Não!”. “Mas você tá na sala de fulana de tal, que é a professora de primeira série”. “É, mas não ensina a ler e a escrever não, ela só ensina a desenhar.”
 
As crianças falavam isso porque participavam de um programa de ensino que pressupunha que as crianças, principalmente aquelas que vinham de camadas populares, precisariam receber uma educação ‘compensatória’. Havia uma visão de que aquelas crianças eram deficitárias e que a escola precisava prepará-las para finalmente começarem a aprender a ler e escrever. A ideia era que as crianças não teriam tido contato com a escrita, que vinham de um meio cultural e linguisticamente pobre. Nos últimos anos, essa perspectiva tem sido muito questionada e a escola tem mudado seu modo de pensar. Porém, naquela época, essa era a visão que prevalecia.
 
Com essa pesquisa, pudemos demonstrar que essas crianças já tinham sido iniciadas por seus pais, seus familiares. Muitas vezes, eu encontrei em casas cadernos que eram reutilizados mais de uma vez por vários membros da família. Havia páginas em que um adulto estava praticando assinatura, porque ia tirar um documento, e havia as crianças também já escrevendo o nome, treinando suas assinaturas. As crianças brincavam de aulinhas, faziam brincadeiras em que o registro escrito era necessário e havia um esforço por parte dos pais de conseguir livros para os filhos. Essas crianças estavam também inseridas num mundo de contação de casos e histórias bastante rico. 
 
Nós estamos falando aqui de uma época em que os trabalhos da Emília Ferreiro e da Ana Teberosky estavam começando a ser divulgados no Brasil. Pesquisas que demonstravam como que as crianças levantavam hipóteses sobre a escrita, como a escrita funciona, como e quando é utilizada ainda eram poucas e não se encontravam muito presentes entre nós. Naquele momento, estávamos começando a olhar para as crianças como pessoas que buscavam ativamente compreender o que estava acontecendo à sua volta, e desvendar os significados e os usos da escrita também fazia parte dessa busca.
 
Essa pesquisa, que buscou conhecer como processos e práticas sociais de escrita se desenvolvem localmente em determinado contexto, nos ajudou a ver na escola o rosto dos índices que apareciam nas estatísticas. Era uma época em que quase 60% das crianças brasileiras eram reprovadas na primeira série. Eu encontrei muitas crianças ou adolescentes, de 10, 11, 12 anos, que estavam repetindo a primeira série por quatro, cinco vezes, e aí acabavam, de certa maneira, sendo ‘expulsas’ da vida escolar. Processo que foi caracterizado como a produção do fracasso escolar, em um livro da Maria Helena Souza Patto. Então, era um contexto bastante problemático.
 

- Em relação à interação em sala de aula, qual o papel da etnografia em suas escolhas?

 
Mais especificamente, o que buscamos adotar é uma perspectiva etnográfica. Ela é fundamental, se se quer buscar compreender as nuances do que acontece em determinada situação social, como a sala de aula, por exemplo. De como determinado fenômeno social é construído na interação entre as pessoas, pelo uso da linguagem, seja ela verbal ou não verbal. 
 
Acho que a escolha de uma abordagem etnográfica foi acontecendo na minha formação muito pela oportunidade de encontrar e aprender sobre essa abordagem já na época do mestrado, porque, localmente, vamos dizer na Faculdade de Educação [UFMG], no Brasil e em outros lugares no mundo, estava se fazendo o que eles chamam de uma virada social em diversas áreas de estudo. Nesse processo, por exemplo, o estudo sobre a linguagem distanciou-se do estudo da língua como sistema abstrato e deu lugar ao estudo da linguagem em uso em situações sociais reais. Estudiosos da cultura escrita passaram a buscar compreender os seus significados para diferentes grupos sociais e nós, pesquisadores educacionais, também fizemos essa ‘virada’ ao buscar conhecer como a realidade escolar estava sendo construída cotidianamente por professores, alunos, gestores. Nesse processo, nós pesquisadores educacionais fomos influenciados por estudos sociolinguísticos, linguísticos e antropológicos, por exemplo, ao analisarmos as consequências de certas práticas linguísticas discriminatórias na escola ou de uma visão bastante limitada da escrita como técnica neutra, como se seus usos e maneiras de aprendê-la e ensiná-la não tivessem raízes e implicações sociais. 
 
Para estudar o que acontece em uma sala de aula, penso que é preciso indagar como as oportunidades de aprendizagem são construídas discursivamente pelos participantes de uma interação social. Seja dentro da escola ou fora dela. Nesse sentido, é buscar entender, por exemplo, na sala de aula, como as oportunidades de aprendizagem estão sendo construídas e reconstruídas pela maneira como as pessoas organizam seu cotidiano. E quais as consequências que essas construções trazem para aquilo que as pessoas podem aprender e ser nesse espaço. Quais as consequências das maneiras de falar e agir em determinadas situações para a construção de identidades, para as relações que se estabelecem de quem sabe e quem não sabe, quem é bom, quem não é, qual é a criança ‘deficitária’, qual a não ‘deficitária’. O pesquisador precisa considerar que a escrita faz parte da nossa tessitura social. O acesso ou não a determinados textos também traz consequências para as pessoas. Você limitar o que vai ler e o que não vai ler e como os textos serão lidos durante a aula, dentro da sala de aula, tem, obviamente, consequências para a formação dos alunos como leitores e produtores de texto e para a própria compreensão do papel e dos significados da escrita em nossa sociedade.  
 

- Qual a contribuição da sociolinguística interacional para a formação de pesquisadores que estudam a sala de aula?

 
A sociolinguística interacional é uma abordagem etnográfica da comunicação entre as pessoas, produzida a partir dos trabalhos do sociolinguista John Gumperz, que desenvolveu estudos na interseção entre antropologia, linguagem e educação. Um dos focos de seu trabalho foi sobre a origem de situações de ‘incompreensão’ entre falantes de uma mesma língua, mas que vinham de culturas ou lugares diferentes, ou participavam de comunidades de fala diferente uns dos outros. 
 
Em um de seus estudos realizados na Inglaterra, ele analisou entrevistas em que indianos falantes fluentes do inglês eram entrevistados por britânicos, funcionários de instituições bancárias ou agências de emprego. Ele percebeu que, apesar do entrevistado e entrevistador falarem a mesma língua, em alguns momentos, acontecia um 'ruído’, uma tensão entre os falantes, mesmo que ambos estivessem buscando apoiar e colaborar para o sucesso da entrevista. Ele identificou que esse ruído, essa tensão, surgia do fato de que certos elementos da conversa, como, por exemplo, o tom de voz, a direção do olhar ou uma pausa na fala tinham significados diferentes para o entrevistador e o entrevistado. Ele demonstrou, então, que elementos linguísticos e paralinguísticos utilizados por participantes de uma conversa servem como ‘pistas’ para a contextualização, ou seja, são usadas pelos ouvintes para interpretarem o que o outro está dizendo ou o que está acontecendo em uma determinada situação comunicativa. 
 
Uma das contribuições mais importantes da sociolinguística interacional, a meu ver, foi demonstrar que pessoas, sejam crianças ou adultos, oriundas de grupos geracionais, linguísticos ou sociais diferentes, poderão interpretar esses elementos linguísticos e paralinguísticos de forma diferente. Eles não têm o mesmo significado para todos. E essa interpretação não se dá de maneira consciente.
 
Pode parecer que isso não tem nada a ver com a sala de aula, não é? Mas não é bem assim. A aula, na verdade, é uma conversa que acontece de uma maneira muito especial. Em uma aula, temos vários participantes, um adulto, um professor, às vezes, trinta crianças, adolescentes ou adultos – que podem também conversar entre si. Esses participantes trazem uma bagagem de experiências linguísticas, sociais e culturais diversas. Uma turma pode reunir pessoas do campo, da cidade, indígenas, negros e brancos. E, durante a aula, o que é dito, a maneira como algo é dito por alguém vai oferecer certas pistas para o ouvinte, que interpretará a partir das referências que ele construiu ao longo de sua vida. Com certeza, as chances são grandes para que situações que o Gumperz chamou de incompreensão ocorram.
 
Vou dar um exemplo de uma situação corriqueira observada em uma turma de educação infantil, durante pesquisa que orientei, desenvolvida por Vanessa Neves, professora da FaE/UFMG. A professora havia passado uma atividade de colorir um desenho. Uma menina, de 5 anos, coloriu rapidamente o desenho e se ocupou escrevendo seu nome. Ela caprichosamente escreveu em letra cursiva, usando uma cor para cada letra. Quando terminou, a menina foi mostrar para a professora e disse: “tia, olha o diferente!”. A professora estava preocupada em atender outras crianças e em verificar se as crianças tinham seguido sua orientação sobre como colorir o desenho. Assim, sua resposta foi, simplesmente: “Sim, mas eu falei para fazer com tinta e não canetão”. Dá para ver no vídeo que a menina sai desapontada com a resposta dada pela professora. Mas ela não desiste e vai mostrar ‘o diferente’ para Vanessa. Vanessa também, como a professora, observa o desenho e faz algum comentário sobre ele, atenta à solicitação da professora para que as crianças usassem tinta.  Então, a menina aponta o nome escrito no papel e diz: “o diferente é isso aqui ó – o meu nome. Achou?”. 
 
Essa situação serve para ilustrar como falantes e ouvintes em sala de aula (ou em outros espaços sociais) nem sempre estão orientados para a mesma coisa e podem estar usando critérios diferentes para considerar o que é relevante em determinado momento. É interessante ver também que, aos cinco anos, as crianças estão refletindo e decidindo como abordar as pessoas a sua volta para alcançar os seus objetivos. Então, a criança vai aprendendo também na sala de aula 'o que é que o outro estava entendendo que eu estava falando'. E essa situação torna também evidente o desafio a ser enfrentado pelo professor em sala de aula. O choque entre interpretações pode levar, como frequentemente leva, a avaliações negativas de um aluno ou das intenções de um professor.
 
 

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