Letramentos para além das fronteiras

Editorial da edição 50 do jornal Letra A


     

Letra A • Quinta-feira, 19 de Julho de 2018, 13:14:00

 

No século XIX era comum, nos jornais brasileiros que tratavam de educação, uma seção que dava notícias sobre como funcionavam os sistemas públicos de outros países. Também era comum o trânsito de alguns educadores brasileiros para outros países ou a vinda de grandes educadores como, por exemplo, a de Helena Antipoff. Esse trânsito não necessariamente significava uma experiência colonizadora, já que as propostas eram criticadas e repensadas tomando as especificidades da educação brasileira. Por outro lado, a apropriação do que acontece fora do País pode ser unilateral se o resultado for o de apenas adotar determinados procedimentos metodológicos e mecanismos de controle do processo educacional, especialmente no contexto contemporâneo de avaliações sistêmicas que determinam práticas escolares que anulam ou minimizam uma interpretação críticas das realidades locais.

Embora haja grande diferenciação entre países, é possível verificar, desde a implementação da escola pública dita ‘de massa’, problemas comuns que unem as ações em torno da escola, como a sua universalização, a discussão sobre o que é educação pública, as finalidades de formar os cidadãos e sujeitos para uma vida mais plena, a qualidade da formação de professores, a relação da escola com a sociedade, o domínio da escrita, da matemática e de outros conhecimentos que fazem parte do repertório de outras gerações...  Em várias matérias deste número do Letra A, vamos encontrar um debate sobre essas questões que continuam fundantes para pensar a educação nesse horizonte de fronteiras mais alargadas.

Tendo em vista esses pontos comuns, há outras várias questões que ressoam e têm que continuar repercutindo em nossa ação política e pedagógica, dentre elas: para qual sociedade, para qual cultura, para quais sujeitos, que conhecimentos, em quais línguas, as ações com a leitura e com a escrita favorecem qual alfabetização?

Como acena David Bloome, na sua entrevista, não há formação inicial de professores que dê conta de antecipar o que ocorre no encontro singular entre sujeitos em uma situação de interação escolar ou educacional. Se essa interação ocorre ao lado de uma política educacional que não segrega, que realmente considera os saberes dos que chegam à escola e lhes possibilita ampliar os horizontes, que garanta, de fato, o direito pleno à educação, o professor terá mais condições de vivenciar práticas sociais de letramento que reflitam a pluralidade de usos e funções atribuídos à escrita. Vários exemplos dados nas reportagens, nas entrevistas e demais seções mostram que quando a sociedade promove uma educação plena, há também um professor valorizado, bem formado e com autonomia para dar respostas ao inusitado; que projeta certas intencionalidades; que indaga sobre seu papel como educador e que não se curva a horizontes homogeneizantes.

Em diversos países e continentes, com variados projetos educacionais, é a condição inevitável da diversidade que traz os maiores desafios e maiores tensões.  A migração, as diferenças culturais e, sobretudo, as econômicas, que continuam gritantes no mundo contemporâneo e que reforçam os sentidos e finalidades da educação. Dentre várias pautas do nosso tempo, destacamos a luta pela inclusão econômica e cultural e a luta pela afirmação das diversas identidades pelas línguas faladas e escritas.

Ver esses ‘outros’ que circulam e que nos fazem circular pelo mundo afora, presentes no Letra A Internacional, reforça, sob a inspiração do Prof. Brian Street, o lado político de ser  “radicalmente relativista” ao pensar a educação e o letramento. Se ser radicalmente relativista é divulgar as ações educacionais desses ‘outros’ e  desvendar as relações de poder que geram as diferenças, esperamos que esse número cumpra também esse papel de ampliar as nossas fronteiras e entender as condições sócio-históricas que fazem da ação de ler e de escrever ações que nos situam no mundo.