Letramentos pelo mundo

Se os desafios de alfabetizar e letrar já variam tanto no Brasil, como seria essa comparação com outros lugares do mundo? Dez pesquisadores estrangeiros conversaram com o Letra A sobre a educação básica e os contextos de alfabetização e letramento em seus países


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 12:19:00

 

Por Vicente Cardoso Júnior

Em 2012, educadores e formuladores de políticas educacionais do Peru viveram uma espécie de trauma coletivo. Na edição daquele ano do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), exame realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre 65 países participantes, o país latino-americano ficou em último lugar nas três áreas avaliadas: compreensão leitora, Matemática e Ciências. Avaliando os impactos, a pesquisadora peruana Virginia Zavala, da Pontifícia Universidade Católica do Peru, afirmou, dois anos após o resultado, que a revisão das políticas acabou direcionando as práticas de sala de aula para uma instrumentalização: “O que é considerado importante agora é praticar a leitura no sentido de um teste. Acredito que a finalidade da educação de formar cidadãos críticos, numa perspectiva intercultural, se perdeu.”
 
A tendência, porém, não é exclusiva do Peru: pesquisadores de outros países entrevistados pelo Letra A observam o mesmo movimento nos sistemas educacionais pelo mundo. “As escolas estão sujeitas, em vários continentes, a políticas ideológicas que têm determinados objetivos – e os alunos, no seu nível local e na sua vida privada, vivem outras realidades que nem sempre vão ao encontro daquilo que são os interesses dessas instituições”, afirma a portuguesa Rómina Laranjeira, pesquisadora da Rede Europeia de Letramento. “Eu me refiro concretamente a paradigmas de educação cada vez mais num sentido de instrução – educação muito técnica e preparação para o trabalho –, como são as orientações da OCDE e da União Europeia”, completa Laranjeira. Percepção que é compartilhada pelo canadense Brian Morgan, pesquisador da Universidade de York: “Os professores em muitas partes do mundo estão sendo vitimados pela imposição de um modelo industrial ou de negócios ligados a certas suposições sobre o aprendizado e o ensino. Vemos mais e mais projetos de educação em torno de uma teoria particular de que o aprendizado se realiza por meio de blocos de conhecimento.”
 
Mas como a escola é afetada por essa tendência em lugares tão diversos ao redor do mundo? A partir de entrevistas com pesquisadores de Angola, Canadá, China, Estados Unidos, Finlândia, França, México, Nigéria, Portugal e Peru, é possível notar que há sempre fatores locais de peso que tornam único o contexto de alfabetização e letramento em cada país. Em torno de temas comuns (a formação dos professores, o multilinguismo, a relação entre currículo e avaliações, as políticas de inclusão), buscamos levantar as principais questões que se colocam para a escola e para a alfabetização em cada um desses países.
 

O sucesso finlandês

 
O sistema educacional da Finlândia é sempre lembrado mundialmente como exemplo de sucesso, sendo os resultados no PISA uma das razões para essa notoriedade. Na avaliação da pesquisadora finlandesa Marja-Kristiina Lerkkanen, da Universidade de Jyväskylä, não se trata apenas de uma nota geral alta, mas da equidade que os resultados revelam: “Mais de 10% dos estudantes na Finlândia pertencem aos melhores em leitura no PISA 2012. Alguns países de alto desempenho no PISA 2012, como Estônia e Finlândia, também mostram pequenas variações nas pontuações dos estudantes, provando que é possível um alto desempenho por todos os alunos.” Outro dado destacado pela pesquisadora como sinal da equidade no sistema finlandês é a fraca relação entre o status socioeconômico e o desempenho dos estudantes.
 
Quais seriam os fatores para o sucesso finlandês na educação? A primeira resposta de Marja-Kristiina Lerkkanen é direta: “A sociedade finlandesa estima e confia nos professores. Quase não há controle ou teste nacional.” Para que essa confiança se mantenha, a formação docente é priorizada, “já que os professores são muito autônomos profissionalmente.” Daí a exigência de titulação de mestrado para todos que lecionam na educação básica. Na avaliação de Lerkkanen, outros fatores se somam para explicar o sucesso do país. Alguns mais óbvios, como um dos mais altos investimentos do mundo em educação (6,4% do PIB em 2016). Outros mais surpreendentes: “A Finlândia tem comparativamente baixo tempo de ensino e 15 minutos de intervalo a cada 45 minutos”, afirma a pesquisadora.
 
Outra vitrine da educação finlandesa é a base curricular nacional, elaborada com grande participação dos coletivos de professores, o que garante ampla aceitação no sistema educacional. Lerkkanen sintetiza como o campo da linguagem é definido no documento: “O objetivo geral do currículo nacional de Língua Materna e Literatura é que os alunos se tornem comunicadores e leitores ativos e responsáveis. A instrução deve basear-se nas habilidades e experiências linguísticas e culturais dos alunos, e oferecer oportunidades de comunicação diversificada (incluindo a leitura) através das quais os alunos possam construir identidade e autoestima. Cada assunto deve ter como base uma série de textos e ser amplamente concebido; os textos podem ser falados ou escritos, fictícios ou factuais, verbais, figurativos, vocais, gráficos ou uma combinação destes.”
 
A proposta vigente no país é de flexibilização das disciplinas – o que a última versão do currículo nacional busca por meio de sete áreas de competências, dentre elas: ‘Competência cultural, interação e autoexpressão’, ‘Multiletramento’ e ‘Participação, envolvimento e construção de um futuro sustentável’. “As disciplinas escolares tradicionais continuarão a existir, embora com fronteiras menos marcadas e com maior colaboração entre elas na prática”, afirma Lerkkanen.
 

少、慢、差、费

 
Na frase acima, os quatro ideogramas significam, nessa ordem: limitado, lento, pobre e trabalhoso. Foram essas as palavras escolhidas pela pesquisadora Sha Tao como “marcas do ensino da alfabetização escolar chinesa por décadas”. Para entender essa avaliação da pesquisadora, é preciso saber que a escrita chinesa é do tipo ideográfica (cada símbolo corresponde a uma ideia ou conceito, assim como nos exemplos acima). Para cada símbolo, chamado ideograma, não há um significado único, podendo haver diferentes acepções conforme o uso. 少, por exemplo, empregado por Tao como ‘limitado’, também porta outros significados relacionados, podendo ser traduzido em outros casos como ‘menos’, ‘pouco’, ‘faltar’.
 
Basicamente, ao ser “alfabetizada”, a criança chinesa aprende um conjunto de ideogramas que constituam um repertorio básico. “O presente currículo nacional e os manuais escolares em uso adotam uma abordagem concentrada, pela qual as crianças devem aprender a ler mais de 2000 caracteres chineses nos dois primeiros anos das escolas primárias. Para diminuir a carga de estudos, os alunos precisam aprender a escrever apenas um subconjunto de caracteres entre esses 2000 caracteres chineses”, relata Tao. O principal problema do modelo de abordagem concentrada estaria na baixa taxa de retenção dos símbolos aprendidos. “As crianças esquecem muito, e misturam bastante os símbolos de som ou ortografia semelhante, e assim enfrentam a tarefa de frequentemente terem que reaprender os símbolos.” 
 
Para a pesquisadora, a melhoria do ensino de alfabetização no sistema chinês passaria pelo fortalecimento e maior contextualização das atividades de leitura. “Algumas crianças conseguem passar rapidamente da condição de ‘aprender a ler’ para a de ‘ler para aprender’. Muitas outras, porém, não conseguem ler fluentemente, podendo ficar presas em círculos negativos, como: leitura não fluente > menos leitura > leitura não fluente > menos leitura. É importante que os professores, alunos e pais trabalhem juntos para quebrar os círculos negativos, com uma revisão mais frequente dos símbolos aprendidos em vários contextos, além de mais atividades de leitura apoiada por professores, pais e colegas, até chegar à leitura independente.”
 
Com um alto grau de cobrança por desempenho acadêmico no país, notadamente das famílias, uma das grandes questões da educação chinesa é a necessidade de redução da carga de estudos. Há três décadas, o Ministério da Educação orientou as escolas a atribuírem no máximo 1 hora de dever de casa na escola primária e 1 hora e meia na escola secundária e, desde então, outras medidas foram adotadas. “As escolas reduziram os exercícios como cópia de símbolos, cálculo aritmético etc., não permitem que os professores mantenham os alunos depois da escola e proíbem tratamentos discriminatórios de acordo com o desempenho acadêmico do aluno.” No entanto, com a redução do tempo na escola e do dever de casa, muitos pais passaram a enviar seus filhos para programas comerciais extraescolares, focados no reforço de estudos.
 

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