Lugar de estímulos e experiências
Desde os primeiros anos de vida, as linguagens, as emoções, o conhecimento e a identidade da criança se constroem de forma integrada. É papel da Educação Infantil propiciar vivências que garantam esse desenvolvimento
Letra A • Quinta-feira, 18 de Dezembro de 2014, 15:12:00
Por Clara Tannure
Essa história começa em uma estrada que se divide em dois caminhos: um deles é um túnel feito daqueles tecidos leves, esvoaçantes e coloridos. O segundo não tem nada de especial: é apenas um caminho simples, direto e de fácil acesso. Por qual deles você passaria? É a partir dessa reflexão que o professor da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) Levindo Diniz Carvalho diferencia o universo infantil do universo adulto. “Nós, adultos, vamos preferir passar pelo caminho mais fácil; uma criança de 4 anos muito provavelmente vai preferir passar pelo túnel”, ele responde. “Essa forma de experimentar o mundo e de se relacionar com ele nessa perspectiva lúdica e de fantasia é típica da criança”, completa.
Nas últimas décadas, muitas coisas mudaram em relação à Educação Infantil no Brasil, a começar pelas concepções de infância e de criança, com o período entre 0 e 5 anos de idade passando a receber cada vez mais a devida atenção. A criança na primeira infância é vista, agora, como um sujeito integral. “A criança não é um ‘vir a ser’, ela já é uma pessoa e precisa ser considerada enquanto tal”, afirma Denise Maria de Carvalho Lopes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Como resultado dessas mudanças, o que antes era considerado apenas um lugar em que a criança ficava enquanto a mãe trabalhava se transformou, hoje, em um ambiente de desenvolvimento das linguagens, das relações sociais e da identidade.
A consultora de redes de ensino Vitória Faria, que atuou no Ministério da Educação (MEC) de 2001 a 2006, conta que, a partir da reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, publicadas em 2009, a Educação Infantil passa a ser pensada como “um espaço de formação humana em todas as dimensões”. “O cuidar e o educar, que são questões básicas dessa etapa, passam a ser entendidos como um trabalho com todas as dimensões humanas: cognitiva, física, afetiva, emocional e social”. Após esse marco na política pública nacional, fica bem claro que essa etapa educacional não é uma preparação para algo que vem depois. Por isso, Denise Lopes não concorda com a nomenclatura “pré-escola”: “Eu discordo desse nome, pois a Educação Infantil não deve ser encarada como um período preparatório para o Ensino Fundamental; ela tem uma função em si mesma”.
Que função é essa?
No Dia do Meio Ambiente, uma professora propõe aos alunos que encham pequenos sacos plásticos com sementes de girassol. Após distribuir os saquinhos, a professora repara que algumas crianças estão os enchendo de ar e mostrando para as outras, dizendo que os sacos estavam gordinhos. Interessando-se pela situação, ela questiona os alunos quanto ao conteúdo do saco. Eles respondem, logo de cara, que os saquinhos não estão cheios de nada, pois não há nada visível. “Se não tem nada, porque o saquinho está cheio? Por que ele muda de forma quando nós abrimos a boca dele? Tem que ter algo aí, vocês não acham?” Com questões assim, a professora foi instigando a turma, até que eles começaram a elaborar suas próprias hipóteses. No começo, chegaram à conclusão de que os saquinhos estavam cheios de vento. Pensaram mais um pouco: o que estava no saquinho não se movimentava, então o que estava ali não era vento, era ar. Mas ainda não faziam ideia de que o que estava dentro dos saquinhos envolve todo o nosso ambiente. Passado algum tempo, criaram um jeito de saber se havia ar em um determinado lugar, com uma evidência empírica de confirmação, que era: inspirar fundo e expirar. Então começaram a correr por diferentes lugares, inspirando, expirando e dizendo: “Olha! Aqui tem ar!” Decidiram, então, fazer uma lista dos lugares onde encontravam ar. Como ainda não sabiam escrever, a professora os seguia fazendo o registro. A lista foi ficando longa! A turma descobriu que havia ar na biblioteca, no parquinho, ao lado do bebedouro, fora da escola, em casa, até que uma das alunas chamou a todos e, com a mãozinha na cintura, concluiu: “Ah, gente! Então eu já sei! Tem ar em todo lugar!”.
Maria Inês Mafra Goulard, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da UFMG, relata com entusiasmo esse evento que observou em uma pesquisa, entre 2003 e 2004, com uma turma de crianças de 4 anos de idade, de uma escola municipal de Belo Horizonte. Maria Inês fala da importância dessas situações que propiciam à criança um encontro com o conhecimento, que parte do desenvolvimento das linguagens na Educação Infantil. “Não é um conhecimento já selecionado pelo professor para ser passado para a criança, mas que brota da curiosidade da criança, porque as crianças são seres ávidos pelo conhecimento; elas estão o tempo todo querendo aprender”, afirma a pesquisadora. O professor de Educação Infantil deve, então, criar situações para que a criança pense, experimente, crie, decida, escolha. “As crianças têm voz, nós é que muitas vezes não ouvimos o que elas têm a dizer”, afirma Patrícia Corsino, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Patrícia entende que o professor, durante essa etapa, deve deixar que as crianças explorem novas possibilidades nas atividades realizadas, mesmo que seja algo fora do planejado. “A gente precisa sair desse lugar do controle, daquele que sabe, que tem a proposta pré-determinada, para entrar na interação, que é o que realmente gera conhecimento.”
Das experiências às linguagens
A consultora Vitória Faria entende que a Educação Infantil tem o papel de proporcionar experiências que ela chama de intencionais. “Eu entendo que nada é natural [no desenvolvimento das linguagens pela criança]. Nem mesmo brincar, a criança brinca naturalmente. Todas as linguagens – corporal, plástica, musical, oral, gestual, escrita, digital – a criança aprende conforme experiências são possibilitadas a ela”, afirma. Vitória fala também da diferença entre as experiências que são geradas pelos pais e as que devem ser geradas pelo professor, as chamadas intencionais. “O professor é aquele que pensa, que planeja, que reflete, que busca, que estuda para trabalhar com a criança. Então, quando ele dá comida para a criança na boca, ele tem uma intencionalidade, quando ele escolhe o alimento que vai dar, quando ele pergunta alguma coisa... Aquilo que ele faz sempre tem uma intenção”, afirma.
Para Patrícia Corsino, na Educação Infantil, “a linguagem tem que ser central não como área de conhecimento, mas como aquilo que constitui a criança”. Opinião semelhante à de Denise Lopes, que fala da importância do desenvolvimento das linguagens na Educação Infantil para a criação da identidade própria da criança e para suas interações sociais. “Pelas linguagens é que nos comunicamos, interagimos com os outros, e os outros interagem conosco. O papel da linguagem é constitutivo da criança como pessoa: constitutivo de sua identidade, de sua pessoalidade, de suas relações pessoais. Então, o lugar dela na Educação Infantil é central”. As atividades desenvolvidas pelo professor durante essa fase não podem ser segmentadas: uma para trabalhar linguagem matemática, outra para linguagem artística e outra para desenvolver a linguagem escrita. Pelo contrário, é importante que todas as linguagens sejam trabalhadas como uma coisa só, conversando entre si e sendo apropriadas pelas crianças para gerar conhecimento.
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