Mais de cem anos de afeto
Com temas universais, como amizade, obediência, ajuda ao próximo e perdão, a literatura infantil de Alaíde Lisboa ainda hoje auxilia em salas de aula
Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:44:00
Por Bruno E. Campoi
Mulher à frente de seu tempo e uma das escritoras mais importantes de Minas Gerais, Alaíde escreveu tanto livros literários quanto didáticos. Como autora de contos, ela conseguiu mergulhar no universo infantil e descobrir como agradar a diversas gerações de pequenos leitores, que ainda hoje se empolgam com seus livros, sem deixar de lado questões pedagógicas.
Maria Imaculada Nascimento, doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, e Kelen Benfenatti, doutora em Estudos Literários pela UFMG, afirmam que a escritora considerava a formação dos leitores “um processo contínuo e complexo”, que envolve não só o desenvolvimento estético e intelectual, mas também moral e cidadão. Além disso, segundo elas, “sua literatura destinada ao público infantil está carregada de sua preocupação com o ensinar. Professora e escritora estão juntas no processo de criação literária, sem, contudo, deixar que certo ‘pedagogismo’ apague o valor estético de sua escrita”.
Isso é visível, por exemplo, em seu maior clássico: A Bonequinha Preta. O livro, lançado em 1938, conta a história de uma bonequinha que, deixada sozinha em casa por sua dona, acaba ficando curiosa com o miado de um gatinho. A bonequinha sobe na janela para conseguir vê-lo, mas acaba caindo do outro lado, dentro do cesto de um verdureiro, e desaparece. Criada em um universo ficcional, a história estimula a criatividade e a imaginação ao mesmo tempo em que ensina valores como a amizade, a bondade e o perdão. Kelen e Maria Imaculada explicam que “ela se volta a questões que considera importantes para a formação do leitor, [Alaíde] quer mais que emocionar por meio de suas personagens, quer alcançar o leitor, quer convidá-lo a pensar”.
A utilização dos livros de Alaíde Lisboa ainda ocorre com frequência em salas de aula. Um exemplo é o da professora Clenice Griffo, do Centro Pedagógico da UFMG, que utiliza muitas vezes com sua turma de segundo ano, na atividade de roda de histórias, livros da autora, como A Bonequinha Preta, O Bonequinho doce e Ciranda. Ela explica que usa os livros de Alaíde porque “são histórias delicadas, sensíveis e ao mesmo tempo têm movimento, aventura e as crianças se identificam com os personagens”. Além disso, Clenice afirma que esses livros permitem uma leitura mais animada, com entonação e até mesmo com o uso de fantoches. Assim, a participação e o envolvimento das crianças é inevitável.
Entretanto, mesmo sendo uma obra que perpassa gerações, Cristina Gouveia, doutora em História da Educação e professora da UFMG, afirma que o livro “A Bonequinha Preta”, por exemplo, precisa ser entendido também dentro do seu contexto de lançamento. Segundo ela, na década de 1930, houve uma transformação da literatura infantil brasileira, com a mudança de uma perspectiva europeia para uma mais nacional, que retratava melhor a identidade brasileira. Ela explica que isso ocorreu devido à mudança de foco da produção cultural e da política nacionalista do governo de Getúlio Vargas.
Ainda que o uso de A Bonequinha Preta seja comum em salas de aula para promover maior diversidade, Cristina ressalta que, mesmo que o livro também tenha um valor afetivo muito forte, ele não cumpre exatamente o objetivo de valorizar a identidade étnico-racial de pessoas negras. Isso ocorre já que, embora o livro tenha sido escrito em um período em que a literatura começava a deixar de ignorar a diversidade, ainda assim os personagens dos livros da época eram tratados, em suas palavras, “de maneira desqualificante”. A boneca da história não é a protagonista; a protagonista é a menina. “Então ela surge, mas numa posição de alteridade, que é comum à época”, explica Cristina. A Bonequinha Preta, então, ainda não representa uma valorização estética que, segundo Cristina, é importante para que a criança possua uma imagem positiva da própria identidade.
Para além das histórias
Longe de serem apenas livros para entretenimento, as obras infantis de Alaíde Lisboa podem ser um ótimo auxílio no contexto de ensino de leitura e escrita. Segundo Magda Soares, “Alaíde Lisboa escreveu os livros pensando exatamente em crianças em fase de alfabetização, por isso o vocabulário é simples, as frases curtas”. Magda explica que seus livros foram muito usados nas escolas quando predominava na alfabetização o método global de contos. Além disso, o conteúdo visual presente neles também auxilia nesse processo de ensino. De acordo com Maria Laura Pozzobon, “as imagens e as ilustrações dos livros infantis possibilitam leitura (s) e, assim, provocam a elaboração de narrativas, sejam elas orais ou escritas, e (...) ampliam o repertório de leitura de mundo de cada leitor”. Assim, é comum que, em aulas como as da professora Clenice, as crianças frequentemente saiam da posição fixa de receptores para também encenar partes da história ou relacioná-las com algo que aconteceu em suas vidas.
As histórias de Alaíde Lisboa também abrem possibilidade para discussões que vão além do livro. Um exemplo é o caso da professora Ivani Ferreira que, ao lecionar para a turma do Maternal II, na EMEI Conceição de Itaguá, em Brumadinho (MG), realizou uma experiência bastante inusitada, utilizando o livro O Bonequinho Doce. Ele narra a história de duas irmãs, Lucinha e Lalá, que queriam ter um irmãozinho para que pudessem brincar. Elas têm, então, a ideia de fazer, com um pouco de água, farinha e açúcar, um bonequinho. Entretanto, logo que é levantado da forma, ele sai correndo sem deixar que ninguém o pegue.
Durante a história, as crianças são ensinadas sobre a importância da amizade, da responsabilidade e da perseverança. Mas, para além disso, Ivani enxergou uma outra possibilidade: a de usar a história como base para o desenvolvimento de um projeto com seus alunos que visou trabalhar o conhecimento e o reconhecimento das partes do corpo humano. Assim, como o bonequinho é moldado na história, as crianças foram estimuladas a aprender o nome de cada parte, com o auxílio de um espelho. Além disso, foram feitos bonecos comestíveis com o formato das crianças e elas ouviram músicas com letras que citam partes do corpo, resultando em uma atividade interdisciplinar.
A importância das obras infantis de Alaíde Lisboa não fica restrita ao ambiente da sala de aula ou ao universo infantil. Um exemplo disso é o da contadora de histórias Gledes Gualberto, conhecida como Guegué, que faz diversos espetáculos no município de Belo Horizonte e região, contando a história do livro A Bonequinha Preta em situações cênicas em que utiliza bonecos e adereços. Segundo ela, essa foi uma história que marcou sua infância e que, por isso, a escolheu para ser apresentada. Assim, Guegué encontrou uma maneira de “dar vida e reviver as boas lembranças a que a obra remete”.
Uma história de conquistas
Nascida em Lambari (MG), Alaíde Lisboa atuou durante sua vida como escritora, jornalista, política, educadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, falecendo aos 102 anos em 2006. Ela se destacou por suas produções nas áreas de literatura infantil, didática e ensaística. Foi também integrante da Academia Mineira de Letras e, aos 45 anos, tornou-se a primeira mulher a ocupar a cadeira de vereadora em Belo Horizonte, atuando de 1949 a 1952. Confira mais sobre a vida de Alaíde no site da Faculdade de Educação da UFMG: http://www.fae.ufmg.br/alaidelisboa/conteudo.htm