Mãos que contam histórias
“Literatura surda” são as produções literárias em língua de sinais que traduzem a experiência de ser surdo. Apesar de pouco conhecidas, as obras do gênero vêm ganhando espaço e atenção nos últimos anos
Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 21:56:00
Por Luigy Hudson
Todos conhecem a história: a jovem Cinderela, diariamente atormentada por sua madrasta, é proibida por ela de comparecer ao baile real. Porém, com a ajuda de sua Fada Madrinha, que lhe fornece um vestido e transporte encantados, bem como um par de sapatinhos de cristal, a garota consegue ir ao baile, onde acaba dançando e se apaixonando pelo príncipe. O feitiço, porém, tem seu prazo de validade expirado à meia-noite. Esse tradicional conto de fadas está presente no imaginário popular há gerações, sendo contado e recontado por séculos. Nem todas as versões, contudo, mantêm a história exatamente igual e algumas a reinventam totalmente. Pensando nisso, e se a Cinderela, a Fada Madrinha e o Príncipe Encantado fossem surdos? E se tivessem que fazer uso da língua de sinais para se comunicar? E se Cinderela não fosse capaz de escutar as doze badaladas dos sinos do palácio anunciando a meia-noite e o fim do encantamento?
Foi a partir dessas questões que Lodenir Karnopp, doutora em Linguística e Letras e professora do Departamento de Estudos Especializados e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, acompanhada de seus então alunos orientandos, que são surdos, Fabiano Rosa e Carolina Hessell, publicou, em 2003, “Cinderela Surda”, uma releitura do clássico conto de fadas. O livro, bem como outras obras escritas pela equipe de Karnopp, como “Rapunzel Surda” e “Patinho Surdo” e diversos outros textos, contos, poemas e narrativas em língua de sinais, caracterizam o que vem sendo chamado de “Literatura Surda”, um gênero que coloca pessoas com deficiência auditiva no centro da produção e publicação de suas obras.
Segundo Karnopp, a literatura surda está relacionada com a cultura surda. A literatura da cultura surda, contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística, é constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais por pessoas surdas; pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas; pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas, jogos de linguagem e muito mais. Nesse sentido, a literatura surda trata, geralmente, do dia a dia de pessoas surdas e também de seus desafios e lutas em meio a uma sociedade majoritariamente ouvinte. Questões como isolamento social e linguístico são abordadas sem, contudo, tratar os surdos como deficientes ou carentes de atenção e cuidados especiais. A literatura surda é, assim, uma forma de manifestação cultural que busca apresentar e representar as particularidades das vivências de pessoas surdas no Brasil. “Então, a gente vem nomeando de literatura surda aquele campo que são as produções literárias na língua de sinais, especialmente, mas não unicamente [produzidas] por pessoas surdas”, diz Lodenir Karnopp.
Karnopp explica que as produções de literatura surda não precisam necessariamente voltar todos os seus aspectos exclusivamente para as comunidades surdas. “Eu acho que daria para, de um modo bastante geral, dizer que tratam de temáticas que têm relação com a experiência de ser surdo, mas não só isso. São produções que podem aparecer, também, traduzidas para o português. Ela pode ser escrita também, mas traduz a experiência de ser surdo.”
Um elemento que caracteriza fortemente as produções desse gênero é a importância da linguagem visual. Karnopp lembra que, ao recontarem obras literárias convencionais em suas aulas, seus alunos (tanto os orientandos citados quanto os demais alunos surdos com quem trabalhava) perceberam que muitos aspectos das narrativas eram adaptações culturais e que nada os impedia de fazer o mesmo para as comunidades surdas. Em “Cinderela Surda”, por exemplo, não fazia sentido dizer que a protagonista foi surpreendida pelas doze badaladas dos sinos do palácio. Os alunos da professora da UFRGS que se envolveram na produção do livro adaptaram, então, essa passagem, dizendo que a garota estava de olho em um grande relógio presente no salão para não perder seu prazo. “A questão do olhar, da experiência visual, tudo isso começou a aparecer na história a partir do uso da língua de sinais dos personagens surdos, dos marcadores relacionados à experiência visual”, diz Karnopp. Além disso, o sapatinho de cristal esquecido pela moça nas escadarias do palácio durante sua fuga foi transformado em uma luva para demonstrar a importância dos gestos de mãos para as comunidades surdas.
Apesar das possibilidades, a professora da UFRGS ressalta, contudo, a dificuldade que enfrentou para encontrar pesquisas e obras de literatura surda no início de sua carreira. A carência de profissionais formados e fluentes em LIBRAS, bem como de incentivo e subsídio para o desenvolvimento de atividades para e com pessoas surdas são algumas das razões para a invisibilidade não só das obras literárias, mas da cultura surda como um todo ter se mantido durante tanto tempo, apesar de o tema já ser alvo de pesquisas em outros países, mesmo na época em que Karnopp começou suas pesquisas. “Cada vez que alguém viajava, eu pedia: ‘traz um livro de literatura surda?’, (…) e eu levava para os alunos e mostrava: ‘olha, tem literatura surda no mundo inteiro!’”
A situação atual: projetos, visibilidade e pandemia
No Brasil, nos últimos anos, diversos projetos, ligados ou não a universidades e centros de ensino, tentam expandir o acesso à literatura surda como gênero narrativo, como, por exemplo: o projeto “Mãos Aventureiras”, em Porto Alegre (RS), criado por Carolina Hessel, que produz conteúdos literários em LIBRAS para seu site e para o YouTube; e o projeto “Mãos Literárias”, em Belo Horizonte (MG), realizado dentro da Faculdade de Letras da UFMG, que também disponibiliza vídeos de contação de histórias em linguagem de sinais nas redes sociais. Sobre o Mãos Literárias, Michelle Murta, doutoranda em Linguística Teórica e Descritiva pela UFMG, atualmente Professora Assistente da UFMG e coordenadora do projeto, afirma: “O Mãos Literárias nasceu com a proposta de auxiliar o trabalho de professores da rede pública de ensino com a relação de ensino de alunos surdos, já que se observa a escassez de materiais literários que sejam criados ou adaptados para surdos. Então, a proposta a princípio era formar os profissionais surdos e ouvintes dentro da área de literatura, para que eles pudessem criar materiais literários e também saber desenvolver um trabalho com as crianças e jovens surdos nas escolas.”
Michelle conta que, “até 2019, o projeto era realizado dentro da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisava histórias, poesias, piadas e lendas já existentes e as recontava em Língua de Sinais; além da criação espontânea de histórias criadas por surdos”. Segundo a coordenadora, seu objetivo era disponibilizar o maior número de histórias, piadas, poesias, etc., para que as pessoas surdas tivessem acesso a conteúdos criados, adaptados e traduzidos. Artistas surdos voluntários se encontravam semanalmente para discussão e gravação de literatura em Libras. Além disso, foram realizados dois cursos de formação para os profissionais interessados em literatura.
Em 2020, contudo, com o início da pandemia de Covid-19, as atividades do projeto foram interrompidas após o fechamento da UFMG. Até a interrupção, o Mãos Literárias matinha contas no Instagram e no YouTube, que eram utilizadas como ferramentas de divulgação e acesso aos materiais produzidos pela equipe. Michelle diz que espera voltar a utilizar essas e outras tecnologias em um futuro próximo. Além das dificuldades que impôs à divulgação da literatura surda por parte de projetos sociais, a pandemia também trouxe como consequência problemas relacionados à falta de acesso que crianças surdas, principalmente, sofrem em relação a recursos que auxiliam em seu processo de alfabetização. “As crianças surdas têm acompanhamento de intérpretes e professores surdos (no caso das escolas da prefeitura), e podem contar com a mediação desses profissionais neste momento de pandemia também”, afirma Michelle. “Mas é claro que, como outras crianças que estudam na rede pública, [as crianças surdas] têm muita dificuldade de acesso a tecnologias e isso atrapalha seu processo de interação com os professores, os colegas e os materiais didáticos.”
Em contrapartida, apesar do desafio que a pandemia representa ao contínuo desenvolvimento e legitimação da cultura surda no Brasil, a visibilidade das comunidades surdas por todo o país é crescente: desde que a língua de sinais foi reconhecida como meio de comunicação e expressão pela Lei N° 10.436, em 2002, houve um aumento significativo no número de produções literárias em LIBRAS e de seu consumo, sendo capaz de abranger um público cada vez maior e cativar o interesse até mesmo de pessoas ouvintes por essas narrativas. Para a professora Karnopp, “a literatura é um meio muito gostoso de se aprender uma língua e há uma potência muito grande nessa parceria”.