Materiais didáticos: escolhas e usos na alfabetização

Sem a pretensão de indicar perfis mais ou menos adequados, nem definir padrões de uso, o Letra A dá espaço, nesta reportagem, para que professores expressem suas visões em relação às escolhas e aos usos de materiais didáticos nas turmas de alfabetização


     

Letra A • Quarta-feira, 27 de Julho de 2016, 09:17:00

 

Por Natália Vieira

Tomar decisões é exigência diária na prática do professor. Para dar uma aula, ele precisa planejá-la, decidindo como organizará o espaço da sala e o tempo das atividades, como se dará a interação entre a turma e, para dar suporte a tudo isso, quais os materiais didáticos irá utilizar e de que forma. Ao se pensar na cultura da escola, o primeiro desses recursos que geralmente vem à cabeça de educadores, pais e alunos é o livro didático. “Várias pesquisas e observações de turmas em disciplinas de estágio supervisionado demonstram que o livro didático é um dos materiais didáticos mais utilizados em sala de aula”, aponta o professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Clécio Bunzen.

No entanto, Clécio alerta que “ser o mais utilizado não implica que o professor faça o que o livro ‘indica’ ou ‘solicita’, pois há todo um processo de seleção e de apropriação por parte do professor na dinâmica discursiva de sala de aula”. Além do livro didático, outros recursos, como os livros de literatura, jogos pedagógicos e tecnologias digitais, são fundamentais para uma formação sólida no ciclo de alfabetização. “Um livro didático não consegue atender plenamente o professor; ele vai sempre ter que completar esse material de acordo com as necessidades e interesses dos alunos”, afirma a doutora em Educação pela UFMG Giane Silva, que pesquisou os usos do livro didático por três professoras alfabetizadoras. Na percepção de Giane, que tem experiência como professora da rede municipal de Belo Horizonte (MG), o livro “é usado nas escolas e está sempre sendo complementado com outros materiais, por diferentes motivos, em diferentes momentos, e com diferentes modos de uso”, observa.

Esses usos – levando em conta as particularidades de cada sujeito e o contexto específico de cada escola – são diversos e dinâmicos, defende Clécio. “Além disso, as realidades municipais e estaduais são heterogêneas no Brasil”, esclarece o professor da UFPE, reforçando que as condições de escolha também são diversas, já que, “em alguns municípios, livros didáticos convivem com materiais apostilados de empresas privadas. Em outros, os livros do PNLD [Programa Nacional do Livro Didático] convivem com os livros produzidos pelo município ou pelo estado. Há, ainda, vários municípios que optam por não adotarem os livros do PNLD”, aponta.

O professor e o material didático

O livro didático comanda o professor ou o professor comanda o livro didático? Essa é uma discussão com reflexos tanto nas escolhas quanto nos usos que os educadores fazem dos materiais a serem utilizados nas atividades de alfabetização. Para Giane Silva, “dificilmente um professor vai ficar preso apenas ao livro didático”. “Não acredito que o livro tire sua autonomia. O professor o utiliza da maneira que acha necessária, selecionando as atividades que acha melhor, que julga mais interessantes; seu uso é flexível”, afirma.

A professora de 3º ano do Centro Pedagógico da UFMG Meridien Souza concorda e acredita que poder utilizar o livro como ela deseja favorece seu aluno, porque, do contrário, estaria usando o recurso como “muleta” – como um amparo para situações em que o professor não sabe bem o que vai fazer. Para ela, é necessário que o professor tenha ideia do que pretende em termos de aprendizagem antes de entrar em sala de aula. “O [uso do] livro tem que estar planejado. Senão, não faz sentido. Tem que ter essa conversa entre os materiais, dos materiais com aquilo que está sendo trabalhado, com a sua proposta. Se isso não ocorre, o aluno rejeita, olha para o professor e fala: ‘o que é isso que nós estamos fazendo?’”, alerta a professora, que atuava na rede municipal de Belo Horizonte (MG).

Professora de 1º e 3º anos da Escola Municipal Doutor Amadeu da Luz, em Pomerode (SC), Viviane Spiess segue uma linha parecida, considerando as necessidades e as habilidades prévias de seus alunos. “Eu faço as escolhas, [pensando] se isso cabe ao meu público ou não. Eles já dão conta disso? Se eu vejo que uma das unidades está muito elaborada, posso optar por trabalhar aquele conteúdo usando outro recurso que não seja o livro”, explica.

“O livro me dá um norte, e o resto eu vou atrás.” A professora Jussimara Rocha, que dá aula para o 2º ano na Escola Municipal Vereador Carlos Pessoa de Brum, em Porto Alegre (RS), resume assim sua opção por utilizar a sequência proposta pelo livro didático em sua turma. “É um livro que escolhi, porque achei muito interessante. A escola não me cobra algo como: ‘tem que usar em tanto tempo’. É uma coisa bem livre, e é uma ferramenta que eu uso para me basear, seguir meu planejamento, e não o contrário”, afirma. A opção, neste ano, por um uso mais fiel da sequência que o livro propõe tem a ver com o material que ela tem em mãos. Jussimara conta que, diferente de ocasiões passadas, este ano ela recebeu, pelo PNLD, a primeira opção de coleção que havia indicado junto com as outras professoras de sua escola. “Receber exatamente o material escolhido por nós foi a principal razão para que eu passasse a utilizar periodicamente os livros didáticos oferecidos pelo Ministério da Educação”, afirma.

Ao atentar-se para a contradição da discussão no país sobre perda de autonomia do professor na utilização do livro didático – já que “não conseguimos criar cursos que formem professores para criar os seus próprios materiais didáticos, mas defendemos uma ‘autonomia’” –, Clécio Bunzen acredita que “a autonomia deve existir na luta política para melhoria dos materiais didáticos e pela garantia de uma escolha plural e com um tempo adequado para que os docentes possam refletir sobre os usos do livro didático em sua prática pedagógica”.

Além disso, Clécio não acredita em uma recepção passiva do livro didático, já que os usos são plurais. “O livro propõe um ‘caminho’ pelo bosque, mas cada docente vai escolher o seu percurso, com a sua turma e com o seu ritmo”, afirma o professor da UFPE, que ainda considera que “a leitura crítica e propositiva também é importante nesse processo, pois a questão não é usar ou não usar, mas o que eu faço quando eu uso o livro didático”, defende.

 


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