Memória da Alfabetização

Crônica da edição 52 do Letra A, por Hércules Tolêdo Corrêa


     

Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 16:47:00

 

Frequentei o jardim da infância dos 3 aos 5 anos de idade, sem faltar nenhum dia, de acordo com a minha mãe. Não tenho memória do primeiro dia de aula, mas meus pais sempre comentavam que, nesse primeiro dia, a professora da turminha, Dona Diva Moreira, me recebeu muito carinhosamente e perguntou se eu sabia falar (declamar) um versinho. Eu prontamente disse que sim! Reza a lenda que ela penteou meus cabelos encaracolados com os dedos, colocou-me de pé sobre sua mesa e disse: - Pode falar seu versinho, Hércules! Eu, mais prontamente ainda, respondi: - Versinho! A sala inteira caiu na gargalhada. Depois de adulto, coloquei meu diploma do jardim da infância numa moldura e dependurei na parede do meu quarto. Este é o diploma mais importante que eu tenho. Foi por causa dele que vieram os outros...

Do Jardim da Infância Olinto Diniz, fui para o chamado pré-escolar (já não era mais pré-primário) de 6 anos, no Grupo Escolar Silviano Brandão. Tanto no jardim quanto no pré, não fui exatamente alfabetizado, não era a proposta. No jardim da infância, tínhamos muitas atividades lúdicas, como uma bandinha musical com instrumentos artesanais, muitas brincadeiras na sala e ao ar livre e de vez em quando desenhávamos ou rabiscávamos em nossos cadernos. Já no pré-escolar, tínhamos uns livros grandes, horizontais, em que ligávamos pares de figura, fazíamos relações entre um desenho e outro, completávamos pontinhos, escrevíamos por cima de traços acinzentados... vez por outra eu ouvia a expressão “controle motor” na sala de aula, mas não sabia exatamente o que significava. Hoje tenho mais clareza disso. A professora preparava-nos para a aprendizagem da escrita.

No mesmo grupo escolar, eu iniciei meu processo de alfabetização na primeira série. Corria o ano de 1971 e havia três ou quatro turmas de primeira série. Quando chegaram os livros de alfabetização, as famosas cartilhas ou pré-livros (como se chamavam à época), foi uma festa só na escola (acho que nas turmas de primeira série, na verdade, mas eu pensava que era na escola inteira). O livro era O circo do Carequinha.

Com O circo do Carequinha eu conheci Zazá, a menina que andava no arame com sua sombrinha, eu conheci Juju, que cavalgava de pé sobre um cavalo e várias outros personagens do encantador mundo do circo. Cada lição ocupava uma única página da cartilha e vinha com uma ilustração, que nós coloríamos nas horas de folga. Eu não aprendi, num primeiro momento, o nome correto das letras. Cada uma tinha uma espécie de apelido, baseado na sua forma, no seu desenho cursivo. Meu pai achava muito estranha essa “estratégia pedagógica”, embora ele não soubesse usar essa expressão. Ele achava esquisito mesmo a professora me ensinar a dizer “dois morrinhos” em vez de “ene”; “três morrinhos” em vez de “eme”; “pontinha de faca” em vez de “efe” e por aí seguia... o “erre” era “morrinho quadrado” e o “agá”, do meu nome, ah, esse eu não me lembro. Só achava muito esquisito quando ouvia alguém dizer que o “agá”’ era “letra muda”... Que estranho, eu não via nenhuma outra letra falar, por que só o “agá” era mudo?

Rapidamente fui aprendendo e memorizando as lições. Meus pais sempre se orgulharam muito do filho “adiantado” que tinham em casa. Achavam lindo eu aprender com facilidade. Então, quando chegava uma visita, meu pai dizia: - Etinho, mostra pra sua tia que você já sabe ler. Etinho era e é meu apelido de infância. Então, eu buscava logo a cartilha na minha pasta, abria na primeira lição e lia. Minha tia aplaudia. Se eram amigos, também aplaudiam. Aí meu pai dizia: - Agora, lê de cabeça pra baixo. E eu lia. Aí ele dizia de novo: - Agora, você vai ler de olhos fechados! Eu cerrava bem os olhos, espremia bem para todos verem que estavam bem fechados e “lia” a lição. Aí todo mundo morria de rir, porque todos percebiam que eu, na verdade, estava apenas repetindo a lição que eu havia decorado, e eu ficava feliz com os risos, seguidos de cumprimentos.

Quando comecei a ler de verdade, treinava em todas as oportunidades que tinha. Como quase não havia livros ou revistas em minha casa, eu precisava fazer as leituras ambientais. Não podia ver uma placa, um letreiro, que eu queria ler.

Os anos foram se passando e eu fiquei cada vez mais envolvido com as letras; tornei-me, na verdade, um apaixonado por elas... e não foi por acaso, mas por gosto mesmo, que virei professor de Letras!