Meninas e meninos em pé de igualdade

Mudar práticas rotineiras na sala de aula, apresentar histórias de mulheres e até recorrer ao Google: como e por que a escola pode – e deve – discutir igualdade de gênero


     

Letra A • Segunda-feira, 26 de Fevereiro de 2018, 18:18:00

Por Luiza Rocha

Na sala do 1° ano do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (RJ), os alunos e alunas aprendem sobre autorrepresentação. A professora Ana Paula Dyonisio lê para as crianças a biografia da artista mexicana Frida Kahlo, muito conhecida por seus autorretratos. Durante a leitura, Ana Paula conta para a turma que Frida frequentou uma escola que tinha poucas meninas. Intrigada com a situação, incomum à sua própria realidade, uma das alunas questiona o motivo da falta de mais meninas na escola de Frida. A professora, então, explica que, por muito tempo, mulheres não frequentavam as escolas e o porquê disso: vendo o interesse da turma pelo assunto, Ana Paula abre espaço para que discutam o tema. A primeira reação dos meninos é zombeteira: pensam em como seria legal uma escola sem meninas, dominada por eles. A professora tenta incitar uma reflexão mais profunda, fala sobre igualdade de direitos, oportunidades, acesso ao conhecimento... “Não deveria ser o mesmo para homens e mulheres?” Ainda assim, há relutância. Uma escola sem meninas ainda parecia uma ideia muito agradável aos garotos. A professora Ana Paula continua os questionamentos e então parte para uma nova abordagem: “se sua avó e sua mãe não tivessem estudado, você acha que a sua vida hoje seria a mesma?”

O debate sobre a igualdade entre homens e mulheres, ou sobre a falta dela, é ainda pouco difundido nas salas de aula do Brasil, seja pela sensibilidade do conteúdo, pelas divergências de opiniões, ou pela falta de preparo dos professores para lidar com o tópico. Para a professora da Faculdade de Educação da UFMG Anna Paula Vencato, os cursos de graduação em Pedagogia não oferecem o suporte necessário para que o profissional saiba reconhecer situações que demandam uma discussão mais profunda com os alunos sobre o tema: “apesar de todo esse medo que os professores agora estão dessa coisa do Escola Sem Partido, e de levar o carimbo da ‘ideologia de gênero’, eles continuam procurando os cursos de formação continuada porque querem ter ferramentas para lidar com as coisas que acontecem no cotidiano”, afirma. Anna Paula Vencato também acredita que as questões relacionadas ao gênero e à sexualidade estão presentes na escola e que “proibir a discussão não vai coibir que certas coisas aconteçam”. Sendo assim, diante de uma situação incômoda, como um comentário machista feito por um aluno, o melhor é “não deixar passar em branco” e conversar sobre o acontecimento, promovendo uma reflexão aprofundada.

As relações de gênero estão presentes em nossas vidas praticamente desde o nascimento. É o que afirma o também professor da Faculdade de Educação da UFMG Cláudio Márcio Oliveira. Segundo ele, o vestuário, o jeito de educar, de cuidar, normalmente reproduzindo costumes típicos da sociedade em que se está inserido, já são direcionados a um gênero específico, e isso acontece em todos os espaços, incluindo a escola. Nas aulas de Educação Física, por exemplo, é comum existir uma separação de “esportes para meninos” e “esportes para meninas”, já que algumas dessas práticas foram, de fato, pensadas para que os meninos trabalhassem atributos como força e resistência, e as meninas, sensibilidade e doçura - como era o caso do ensino de Ginástica na primeira metade do século 20, como exemplifica Cláudio Márcio. Mas não é só na Educação Física que a criança é condicionada a uma determinada educação corporal: “Todos os rituais, normas disciplinares, subversões e demais fazeres cotidianos na escola participam direta ou indiretamente do processo de educação do corpo das e dos estudantes”, completa. Quando essa educação incide em sexismo e discriminação, é papel da escola fazer o enfrentamento, afirma o professor. “Como exemplo, podemos pensar o futebol entre meninos e meninas jogando juntos como uma possibilidade de problematização e enfrentamento de estereótipos de gênero que permeiam esse esporte e a sociedade”, sugere.

Idade adequada?

Se a educação de meninos e meninas já difere desde o nascimento, distinção muitas vezes reforçada nas práticas escolares, outro ponto de debate é a idade adequada para abordar certos temas. Por exemplo, quando e como tratar das diferenças biológicas entre sexo masculino e feminino? Para Anna Paula Vencato, isso deve acontecer quando a criança começa a perguntar sobre o assunto: “Se a criança elaborou essa questão é porque ela tem condições de entender a resposta”. No entanto, a professora frisa que é importante não interpretar as dúvidas infantis a partir de um ponto de vista ‘adultocêntrico’: “às vezes as pessoas acham que a criança está fazendo uma coisa de forma sexualizada, quando na verdade ela só está curiosa para saber como é o corpo da outra criança”, explica. Dessa forma, a mesma pergunta, que às vezes soa constrangedora para um adulto, pode ser mera curiosidade da criança, que ainda não entende o tabu do tema. Assim, Anna Paula diz que as interpelações de alunos devem ser respondidas com honestidade, adaptando-as à idade do estudante e pensando em uma linguagem que seja de fácil entendimento, sem ultrapassar a quantidade de informações que ele é capaz de processar.

Ao desenvolver o projeto Mulheres Inspiradoras, no Centro de Ensino Fundamental 12, de Ceilândia (DF), a professora Gina Vieira confirmou que o ideal é que a reflexão sobre gênero nas escolas se inicie o mais cedo possível. Ela conta que, quando começou esse trabalho em uma turma do 9º ano, percebeu que “o estrago já estava muito grande.” Nessa turma, o projeto consistiu em conjugar o conteúdo de Língua Portuguesa e Literatura ao tema da igualdade de gênero: ao perceber a necessidade de reflexão com a turma sobre o papel da mulher na sociedade, ela trouxe para leitura “biografias de grandes mulheres”. Mas, enquanto elaborava o projeto, passou a observar que a própria escola mantinha algumas estruturas machistas e, para que o trabalho fosse efetivo, a própria instituição deveria se propor a algumas mudanças. É nesse sentido que Gina defende que o tema seja abordado para todas as idades, mas com adequação da reflexão ao cotidiano e às vivências de cada turma: “Por exemplo, quando trabalhei com os meus alunos [do 9º ano], me senti muito à vontade para falar sobre violência contra a mulher, porque entendi que eles tinham maturidade para isso, para discutir feminicídio, a Lei Maria da Penha e a própria biografia da Maria da Penha, que foi vítima de uma situação de violência doméstica. Isso não faz sentido na Educação Infantil. E aí, qual seria a melhor abordagem?”. Para a professora, um exemplo de mudança estaria em evitar jogos que criam times de meninos contra meninas, o que reforça uma competição entre os gêneros.

Ler, inspirar, emancipar

A carga de leitura proposta por Gina no trabalho é bastante densa, e ela explica que não abre mão disso em sua prática pedagógica: “a leitura, de modo geral, tem um poder extraordinário de nos fazer pensar na nossa própria identidade, pensar na nossa cultura, exercitar a alteridade, nos colocar no lugar do outro, nomear os nossos conflitos, elaborar a nossa existência, as nossas dores.” Outro ponto ressaltado por Gina é o de que ela sempre teve a preocupação de adequar o projeto às diretrizes curriculares do governo e da escola, tomando o assunto como tema transversal - portanto, sem prejuízo dos conteúdos curriculares de Língua Portuguesa e Literatura.

Com a realização do Mulheres Inspiradoras, Gina percebeu que encorajou outros professores que antes ficavam receosos de falar sobre o tema em aula, ou propor uma discussão muito fora do que a escola sempre seguiu. Coragem que pode ser reforçada por pesquisa do Ibope feita em fevereiro deste ano, que aponta que 84% dos brasileiros concordam totalmente ou em parte que professores discutam igualdade de gêneros nas escolas. O levantamento mostra uma sociedade em descompasso com os projetos de lei impulsionados pela ideologia da Escola Sem Partido, que propõem proibir o debate sobre gênero, sexualidade e outros temas em sala de aula, com a justificativa de que alguns professores estariam “doutrinando” estudantes de acordo com as próprias convicções. Para a professora Anna Paula Vencato, o argumento não faz sentido, porque a criança é influenciada pelo mundo a sua volta o tempo todo – não somente na escola, mas também em casa, na vizinhança e em outros ambientes sociais – e desenvolve sua própria interpretação de tudo o que observa. Além disso, Anna Paula ressalta que “a escola é talvez o único espaço dentre todos esses em que a criança tem a possibilidade – e faz isso com alguma frequência – de dizer: ‘professora, eu não concordo com isso que você está falando’”.

É de menino ou de menina?

Ao se pesquisar no Google Imagens “brinquedo menino” e “brinquedo menina”, os resultados são muito diferentes. Para os meninos: carros, caminhões, aviões, bonecos de ação, brinquedos de montar... Para as meninas: bonecas, fogãozinho, casinha, e muito, muito rosa. “Ao menos tem ali uma coisa de montar, né?”, foi a reação de uma aluna da Escola Pluricultural Odé Kayodê, na Cidade de Goiás (GO), quando se deparou com os resultados obtidos na pesquisa sobre brinquedos de meninas. Quem levou o material para a turma foi a jornalista Sílvia Amélia de Araújo, convidada pela professora Adriana Campelo a realizar uma atividade sobre gênero com as turmas de 4º e 5º ano da escola.

Para iniciar a dinâmica, a jornalista perguntou como eram cabelos, roupas e brinquedos de meninos e meninas. Para ilustrar como existem concepções sociais predominantes para cada gênero, utilizou as pesquisas feitas no Google Imagens, incentivando as crianças a analisarem os resultados obtidos na página. Ao compararem os resultados, por exemplo, das buscas por ‘cabelo menina’ e por ‘cabelo menino’, perceberam que as meninas sempre apareciam com mechas mais longas que os meninos. Ao questionar a turma sobre o porquê disso, surgiram diferentes respostas, como conta Sílvia Amélia: “Uma menina disse que os cabelos das mulheres cresciam mais rápido. Um menino retrucou que não era nada disso: é que cortavam o cabelo deles o tempo todo.” No entanto, quando perguntou qual o problema de um menino ter cabelo comprido e uma menina, cabelo curto, a resposta unânime foi: ‘Nenhum!’

Resultados no Google Imagens: para a busca ‘brinquedo menino’ (imagem acima), muitos veículos em cores diversas; na busca ‘brinquedo menina’ (abaixo), prevalecem objetos ligados a tarefas domésticas, na cor rosa

Mulheres tocantinenses e suas histórias

Dona Mundica, quebradeira de coco. Dona Naninha, produtora do biscoito Amor Perfeito. Dona Miúda, artesã de peças com capim dourado. Dona Joana, produtora rural da comunidade do Canela. Essas quatro mulheres tocantinenses, de histórias e vivências distintas, compartilham trajetórias de muito trabalho e sucesso, alcançado pelo uso criativo das riquezas naturais do estado de Tocantins. Por seus feitos, suas histórias foram apresentadas a crianças e adultos por meio do projeto “Mulheres tocantinenses que fazem história”. A iniciativa foi do Centro de Educação Infantil (CEI) do Tribunal de Justiça do estado, voltado para filhos de servidores do órgão, que, em virtude do Dia Internacional da Mulher, realizou trabalhos com todas as turmas, relacionando os conteúdos pedagógicos com as biografias dessas quatro mulheres.

Cada turma estudou sobre uma das personalidades e apresentou as histórias das quatro tocantinenses para os pais, mães e responsáveis, no dia 8 de março. Os alunos do Maternal I, de 2 anos, plantaram cenoura na horta da escola, para aprender um pouco sobre a agricultura, fonte de renda da Dona Joana. No Maternal II, crianças de 3 anos fizeram, sob a supervisão da professora, o “beijinho” doce à base de coco, que era o fruto com que Dona Mundica trabalhava. Os alunos de 4 anos, do 1º ano da Ed. Infantil, conheceram a história da Dona Naninha e produziram o biscoito Amor Perfeito a partir da receita original. E, por fim, a turma de 5 anos, do 2º ano do Infantil, organizou um expositor com o artesanato do capim dourado, como fazia Dona Miúda. Além das atividades práticas, as turmas também fizeram exercícios de Português e Matemática, relacionando o conteúdo pedagógico com a temática estudada. Todas as turmas tiveram ainda a oportunidade de conhecer pessoalmente Dona Naninha, a única que ainda está viva e que permanece produzindo seus biscoitos, muito conhecidos em Tocantins.