Minha experiência como educador

“A profissão docente, fruto de uma reorientação vocacional, hoje me confere identidade de que não me arrependo”


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 13:13:00

 
Por Silvestre Filipe Gomes*
 
Agradeço ao jornal Letra A pelo convite feito para poder partilhar a minha experiência como educador. A educação, para ser sincero, é uma vocação que surgiu em mim muito tardiamente. Desde a minha infância, política e religião chamaram a minha atenção, e nunca havia pensado que um dia poderia abraçar a profissão docente. Depois de ter saído do Seminário Maior, em 1998, quis fazer o curso de Direito, mas, quando cheguei à minha província de origem (Cabinda, Angola), as inscrições na Faculdade de Direito já estavam encerradas. Optei, como alternativa, pelo Instituto Superior de Ciências da Educação, vocacionado para a formação de professores. Nem com isso ganhei de imediato a predisposição para ser professor.
 
No decurso do primeiro ano de licenciatura em Psicologia Escolar, foi-me oferecida uma vaga de emprego no Ministério do Interior, como funcionário dos Serviços de Informação. Por um conflito motivado por valores políticos e crenças religiosas, os meus irmãos mais velhos posicionaram-se contra esse emprego, mesmo com garantias de um bom salário e outras regalias que a função preservava. Em respeito aos conselhos da família, conformei-me com a educação no ensino fundamental como professor de língua portuguesa. 
 
A experiência inicial não foi motivadora, visto que a escola onde fui colocado não tinha as mínimas condições de habitabilidade. Era uma escola da zona rural, sem luz elétrica, água, serviços sanitários, como também não possuía salas suficientes para acomodar todos os alunos. Em uma sala cabiam, com muita dificuldade, 70 ou mais alunos. A temperatura do interior da sala era sentida fora. Entre coragem e arrependimento, lutava enquadrar-me no ritmo do trabalho.
 
Outra dificuldade que se aliava a essa era a inexperiência pedagógica em uma escola onde cada um fazia as coisas a seu jeito. Parece que a minha formação em Filosofia durante o Seminário não se compatibilizava com a Didática! Encontrava muita dificuldade para fazer a transposição didática dos conteúdos. Não sabia como fazer as transformações adaptativas dos conteúdos de saber destinados a ensinar, para torná-los aptos a ocupar um lugar entre os objetos de ensino, como diria Chevallard.
 
O conteúdo era passado aos alunos da maneira como ele estava no livro de língua portuguesa ou de gramática normativa, sem levar em consideração as características particulares dos alunos. O planejamento era feito algumas horas antes da aula. 
 
A minha relação com os alunos era do professor distanciado, procurando estabelecer a diferença entre eles e eu. O contato com os alunos se estabelecia apenas na situação da sala de aula, sem possibilidade de uma interação fora dela. 
 
Essas dificuldades minimizaram-se no meu segundo ano de licenciatura, quando ganhei a consciência de que dar aula não era uma questão de ler um livro e explicar aos alunos, mas que se tratava de uma atividade que exigia fazer uma síntese pragmática de diferentes áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Psicologia, a Teoria da Educação, para entender o aluno, seu contexto sócio-histórico e as suas particularidades individuais, procurando contextualizar o saber a ensinar; na realidade, o aluno-indivíduo, criando um bom ambiente afetivo. Aqui valem as palavras de Wallon: “as questões afetivas são como molas propulsoras que promovem o avanço e o desenvolvimento dos indivíduos”.
 
O tempo de licenciatura facultou-me uma nova visão vocacional e profissional, porque, na medida em que o tempo foi passando, fui ganhando a vontade de ser educador e incorporando essa profissão em mim, mesmo as condições de trabalho continuando inalteráveis. Contudo, fui aprendendo métodos e técnicas de construção ativa e interativa dos conhecimentos; já conseguia aliar os conhecimentos teóricos à realidade e necessidades dos alunos. 
 
Essa experiência no ensino fundamental durou pouco tempo. Em 2011, por meio de um concurso público de provimento de vagas no Ensino Superior, desvinculei-me para a Universidade Onze de Novembro, tendo sido admitido na categoria de Assistente Estagiário. Os docentes dessa categoria têm a missão de auxiliar um determinado professor nas atividades científico-acadêmicas, o que é o meu caso.
 
Em termos de carreira docente, ainda não tenho um caminho trilhado para uma afirmação sólida na docência universitária. É uma nova experiência de aprendizagem. Minha condição de estudante não me permite uma dedicação exclusiva à atividade docente, isso porque, dos 6 anos do tempo de serviço na universidade, apenas 3 anos foram consagrados ao serviço; o restante é empregado aos estudos de mestrado (2012- 2014) e, agora, doutorado (2017- 2021).
 
Em suma, a profissão docente, fruto de uma reorientação vocacional, hoje me confere identidade de que não me arrependo. A missão atual é fazer um investimento permanente para a aquisição de instrumentos teóricos e metodológicos suficientes para o exercício eficiente da profissão. 
 
*Silvestre Filipe Gomes é natural de Angola, um dos países colonizados por Portugal. Graduado em Educação pela Universidade Agostinho Neto, concluiu o curso com o trabalho de tema: “Reflexão sobre a desmotivação dos professores do ensino primário”. É mestre e atualmente doutorando em Educação pela UFMG.