Modos de contar

A escrita articulada a sons, cores, imagens, animações e outros recursos multimodais na literatura infantil


     

Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 16:06:00

Por Poliana Moreira

Na segunda metade do século 19, ainda não se falava no termo multimodalidade, mas os poemas visuais do francês Stéphane Mallarmé são um exemplo de como essa característica já estava presente na literatura. “Ele cria um poema em que você precisa ler duas páginas ao mesmo tempo. É um modo diferente de ler: você começa a ter uma quebra de um modo linear de leitura, de uma palavra depois da outra”, explica a professora da Faculdade de Educação da UFMG Celia Abicalil, pesquisadora do Ceale. Devido a desenvolvimentos tecnológicos e novas práticas sociais relacionadas ao livro, hoje a literatura infantil é um importante campo para se pensar a multimodalidade. Junto à exploração do espaço da página, som, imagem e cores são outros dos modos semióticos (modos de produzir sentidos) que são combinados à escrita nos textos multimodais.

“De forma simplificada, eu diria que a multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que concebe a interação humana como constituída por vários modos e não apenas pela língua”, explica Ângela Dionísio, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que lembra ainda que “o traço multimodal dos textos não é atributo da contemporaneidade” – as iluminuras medievais são o exemplo mais lembrado disso.

O livro em novos formatos e funções

Os avanços tecnológicos do século 19 colaboraram para a presença maior de elementos multimodais nos livros. “As fábricas começaram a produzir edições impressas com um número maior de cores e com desenhos mais próximos dos feitos pelos ilustradores”, explica Danielle Cristina Mendes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No século 20, acrescenta Daniela, “essa relação vai se intensificar”. “Começam a surgir livros nos quais o texto [verbal] vai ser complementado e algumas vezes suplementado pela imagem.”

Nessa virada de século, os livros voltados para crianças passam a ganhar novas funções e também novos formatos. “Esse livro deixa de ter predominantemente uma função pedagógica e passa a ser visto como objeto estético”, destaca Danielle. Os efeitos disso passam a ser notados na materialidade do livro. Segundo Celia Abicalil, o livro ilustrado, que trabalha com linguagem verbal e visual, é um exemplo de trabalho com a multimodalidade, que começou a influenciar outros tipos de obra. “Com o grande salto que os livros ilustrados deram na produção contemporânea, eles começam a interferir e a influenciar os livros para jovens e até livros para adultos”, conta a pesquisadora.

 

 

Além das páginas

Os multimodos da literatura vão além do impresso. “A literatura oral existe em um contexto multimodal, no qual os gestos, a voz, as modulações e o tempo da voz são usadas como forma de significação que vão além de um único modo de representação”, pontua Giselly Lima, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Nesse contexto sonoro, a multimodalidade se faz presente de diversas formas. “Temos a música, as palmas, temos a ideia da literatura oral, temos o ritmo, a repetição, os textos acumulativos: isso tudo vai fazer com que você pense no texto verbal mais oral, mais o ritmo, mais a música...”, afirma Celia Abicalil.

Com a internet e os recursos do mundo digital, a multimodalidade na literatura infantil ganha novos desenvolvimentos. “O fato de vivermos em um mundo multimodal e hipermidiático faz com que comecem a ser criados livros que apresentam links para que as crianças acessem a complementação dos livros e outras brincadeiras”, conta Danielle. Essa revolução causada pelo mundo digital já alcançou até os clássicos da literatura infantil. “Flicts, de Ziraldo, que foi lançado em 1969, em impresso, foi lançado em 2015 como aplicativo. O autor e a editora entenderam o impacto e a quantidade de leitores que usam a literatura digital”, pontua Giselly.