Muito além de jogos e brincadeiras

Alfabetizar de maneira lúdica é mais que trazer diversão para o ensino


     

Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 15:25:00

 
Por Fernanda Tubamoto e Natália Vieira
 
Se tem uma palavra que professoras da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental sempre devem ouvir, quando se discute sobre o ensino nessas etapas, é a tal da “ludicidade” ou do “lúdico”. No senso comum, ao ouvir essas palavras, pensa-se logo em brincadeiras e diversão. No dicionário Michaelis, por exemplo, a definição é exatamente essa: “relativo a jogos, brinquedos ou divertimentos”, “relativo a qualquer atividade que distrai ou diverte”. No entanto, na pedagogia, o conceito de “lúdico” ou “ludicidade” vem sendo há muito tempo pensado e esmiuçado como mais que isso. 
 
Em seu livro Educação Lúdica - Técnicas e Jogos Pedagógicos, Paulo Nunes de Almeida defende que “a educação lúdica está distante da concepção ingênua de passatempo, brincadeira, vulgar, diversão superficial. [...] aparece sempre em direção a algum conhecimento, que se redefine na elaboração constante do pensamento individual em permutações com o pensamento coletivo”. Em entrevista à Plataforma do Letramento, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), a professora Magda Soares afirmou que “para a criança, aprender a ler e a escrever, se se sabe agir bem, é uma atividade lúdica”. Ela dá um exemplo: “a consciência fonológica, a criança realmente começa a desenvolver lá na educação infantil, quer as pessoas queiram, quer não queiram. Quando a professora está trabalhando com parlendas, a criança está percebendo os sons, sobretudo parlendas que não têm sentido. Aí ela está com a atenção voltada para os sons da parlenda. Ela está desenvolvendo consciência fonológica.”
 
A coordenadora pedagógica Lenice Ramos Dutra tem uma visão parecida com a dos professores Paulo e Magda. Para Lenice, que trabalha atualmente na rede pública de Blumenau e já foi professora alfabetizadora, “trabalhar com o lúdico não é só pensar em jogos, circuito ou cantos feitos com temas; é pensar além, onde as crianças se movimentam, trabalham construindo algo para o projeto e ajudando uns aos outros, numa interação e parceria”. 
 
Para Lenice, as crianças saem da educação infantil cercadas do lúdico, e quando vão para o ensino fundamental, há uma ruptura grande com isso no ensino. “Na escola, as crianças tão pequenas têm que sentar uma atrás da outra, aprender a usar o caderno e copiar do quadro. Então, elas cansam, não fazem, e tudo que têm nas mãos vira brinquedo, por quê? Elas querem brincar e isso é nato delas”, explica. Na visão da coordenadora, quando a criança tem interesse, ela se envolve e quando não tem interesse, ela “bagunça”.
 
Letícia Galli, professora do terceiro ano do ensino fundamental na rede municipal de Guaratinguetá (SP), traz o pensamento do teórico Lev Vygotsky para defender a importância da ludicidade para o processo de aprendizagem da criança. “Ele [Vygotsky] fala que a criança aprende de uma maneira socioconstrutivista. O que é isso? A criança aprende em contato com o mundo e com o outro. Mas ela não aprende por aprender. Ela aprende imitando, aprende brincando. Então trazer isso pra sala de aula vai fazer com que o aprendizado seja significativo.” Em geral, o ensino é muito rígido e pautado no modelo de “antigamente”, e as práticas que funcionavam muitas vezes podem não funcionar hoje, já que o aluno de “20 anos atrás” não é o mesmo aluno de hoje, acredita Letícia. 
 
Planejar e escutar 
 
Apesar de o lúdico ser muito associado à diversão, o que pode remeter a momento de lazer, Letícia defende que é necessário ter planejamento e finalidade nas brincadeiras propostas no momento de ensino. “Brincar em sala de aula não é simplesmente dar um jogo para a criança, mas, a partir daquele jogo, observar uma habilidade que a criança precisa aprender e, por isso, utilizar o jogo, ou utilizar a brincadeira em si. Quando não tem finalidade, com certeza atrapalha, porque é a brincadeira pela brincadeira”, argumenta. Ela aponta que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz em seus parâmetros a importância do lúdico para a alfabetização e para a educação básica de modo geral e utiliza a BNCC como referência.
 
Em sua prática, Letícia consulta a Base para saber a habilidade que a criança precisa aprender no ciclo em que está e, a partir disso, desenvolve suas atividades. “Vou dar um exemplo: eu preciso trabalhar com a criança a psicomotricidade dela. Uma das habilidades é desenvolver a motricidade óculomanual. O olho e a mão. Como eu posso trabalhar isso? O boliche, por exemplo, é um jogo que pode trabalhar isso. Qualquer jogo que precise olhar e movimentar a mão é um jogo que trabalha essa habilidade”, explica. 
 
Além de se preocupar com as habilidades que a criança irá desenvolver, dialogar com as crianças e aproveitar as situações reais que surgem é fundamental para que as atividades sejam mais palpáveis para elas. É o que Lenice, quando era alfabetizadora, fazia. Ela conta sobre um projeto que iniciou com seus alunos a partir de uma visita inesperada. “Eu sentei com as crianças e disse: ‘que projeto vocês querem, o que vocês querem aprender?’ Nisso, entrou um passarinho [na sala de aula]. ‘Ah, nós podíamos estudar o passarinho’, eu disse”. Com a ideia de partida definida, ela desenvolveu com os alunos as questões iniciais, como: “onde os passarinhos vivem?”; “como os passarinhos vivem?”; “o que eles comem?”. A partir disso, Lenice apresentou às crianças várias espécies de pássaros e dividiu os alunos em grupos para que eles fizessem bonecos dos animais. “Aí cada um mostrou seu passarinho, falou o nome, a cor das penas, onde vive, tudo que nós estudamos em grupo, em apresentação para a classe”, conta. 
 
Em sequência, Lenice lançou outra pergunta para a turma: “‘o que o passarinho faz? Ah, ele canta, então nós temos que fazer uma música dos passarinhos’, aí fizemos uma música.” A partir da canção, a atual coordenadora pedagógica trabalhou as letras e o vocabulário com as crianças. O projeto, que durou um ano, ainda contou com festa à fantasia, produção de cartões e de um tapete de folhas.
 
Outro elemento que Letícia destaca é o trabalho com gêneros textuais do cotidiano do aluno. “Isso vai fazer com que ele sinta que tem importância em aprender. E ele vai ter essa aprendizagem de uma forma muito mais prazerosa, porque o cotidiano é aquilo que está perto dele”, afirma.  
 
O ambiente não pode ser esquecido
 
Letícia chama a atenção também para o ambiente como elemento importante para a ludicidade. “Pensa numa sala tradicional, entre aspas, com todos enfileirados. A criança não tem contato com o outro. Ela tem contato com aquele mundo da carteira dela. Mas se você colocá-la em dupla, grupos, pode ser grupos de diferentes dificuldades, trios, o que a gente chama também de colmeia ou girassol, que são grupos de 6 crianças... isso vai fazer com que o aprendizado ocorra de maneira mais fácil, porque ela vai contar pro outro sobre o que ela tem dificuldade, e o outro vai ensiná-la e vice-versa”, defende. 
 
A professora da rede municipal de Guaratinguetá adota o argumento de Magda Soares de que “o ambiente precisa ser alfabetizador”, ou seja, o ambiente deve colocar a criança em contato com o uso da escrita. Letícia alerta que, para isso, não basta apenas haver cartazes e outros elementos na sala de aula, mas também existir estímulo para que a criança traga suas contribuições e seus interesses. “Então [existir] um ambiente em que a criança possa trazer de casa uma notícia, possa trazer um livro pra ler, uma leitura deleite todos os dias”, exemplifica.  
 
Para a professora Letícia, dessa forma, a criança vai sentir prazer em aprender e em buscar conhecimento. “A educação básica precisa preservar a infância”, defende ela. “Nós mesmos, adultos, quando nos deparamos com uma brincadeira, aprendemos melhor. Marca a nossa vivência. Imagina para uma criança!”