O direito à infância

A criança, enquanto sujeito de direitos, se relaciona com o mundo à sua maneira, sendo papel da Educação Infantil garantir a integridade dessa fase da vida


     

Letra A • Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014, 15:20:00

Por Izabella Lourença

A fama de “cidade das bicicletas” de Amsterdam, capital da Holanda, é um exemplo de conquista social alcançada com o protagonismo infantil. Devido aos acidentes que ocorriam principalmente com crianças que se locomoviam para a escola de bicicleta, o movimento Stop de Kindermoord (Pare o Assassinato de Crianças), com protestos dos quais elas também fizeram parte, pressionou o governo pela construção de ciclovias. Maria Cristina Soares de Gouvêa, professora da Faculdade de Educação da UFMG, cita este caso dos anos 1970 para falar da necessidade de se reconhecer a criança como sujeito de direitos, de maneira articulada a uma política cultural e urbana. “Cada vez mais se tem pensado a criança enquanto sujeito social, que pode ter formas e linguagens diferentes de significar o mundo, mas ainda assim um sujeito que exerce seu lugar na vida social e nela intervém”, afirma.

A maneira de a criança experimentar e representar o mundo é fundamental para a construção de seu conhecimento – e nesse processo seus tempos precisam ser respeitados. Maria Cristina considera que, ao engatinhar, por exemplo, a criança já está se preparando para andar, mas também vive essa fase à sua maneira. “É sua forma de significar o mundo neste momento, olhando aquelas pernas todas. O adulto vai deixar a criança viver aquilo ou vai acelerar o desenvolvimento, colocando-a para ficar de pé?”. A singularidade das infâncias requer a preservação de suas experiências, linguagens e relações sociais. Para Maria Cristina, a Educação Infantil deve ser estruturada nessa concepção, entendendo as diferentes infâncias.

As representações construídas nessa fase da vida estão condicionadas, entre outros elementos, aos ambientes que as crianças habitam. Isso coloca diferentes vivências, por exemplo, para as que crescem nas cidades e para as do campo. Para Isabel de Oliveira e Silva, também professora da Faculdade de Educação da UFMG, nas áreas rurais, as crianças têm uma relação com os elementos da natureza muito mais intensa do que é possível nos ambientes urbanos. O campo pode oferecer, por exemplo, a possibilidade de construir brinquedos com madeiras, pedras e folhas, experiência que pode ser muito mais instigante do que usar objetos padronizados na sala de aula. Ao mesmo tempo, Isabel observa que as infâncias no campo também são diversas. “Existem meios rurais sem um ambiente natural tão instigante, seguro e desafiador. Em outros lugares, as crianças moram muito longe umas das outras e não têm tanta possibilidade de se encontrar”. Nesse último contexto, a escola aparece como espaço crucial de contato entre as crianças.

Sob a perspectiva das diferentes experiências possibilitadas pelos ambientes distintos, Isabel considera que a Educação Infantil no campo deve ser planejada conforme o modo de vida das famílias e a forma como as crianças se relacionam com a natureza. Segundo ela, “levar para o campo os padrões da escola urbana pode eliminar elementos como a luminosidade solar, o cheiro e a percepção do vento. Isso acaba gerando desconforto para as crianças e empobrecendo a infância, ao invés de enriquecer”.

 

O conhecimento em seu tempo

A coletividade é característica das brincadeiras das crianças. Ainda que ela esteja brincando sozinha, as brincadeiras têm um significado coletivo. A imitação, por exemplo, é um ato pelo qual “a criança tenta entender o que é o mundo ancorando-se no mundo adulto. Mas é uma reprodução interpretativa”, afirma Maria Cristina Gouvêa. Brincadeiras como o “faz de conta” são linguagens que a criança utiliza para significar o mundo e devem ser preservadas na primeira infância.

Entretanto, a ansiedade pelo sucesso em uma sociedade competitiva já tem tido reflexos em experiências da Educação Infantil, o que força essa etapa educacional a se distanciar da fantasia e se aproximar de modelos escolares. Miriam Stock Palma, professora do departamento de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que existe uma visão distorcida de que brincar se contrapõe a aprender. As brincadeiras, até a faixa dos 6 anos de idade, podem desencadear habilidades importantes para toda a vida, pois é o momento em que as pessoas estão mais desinibidas para aprender. “Uma criança que não brinca, quando estiver mais velha e sentir vontade de jogar, não vai se sentir capaz. Isso acontece porque ela não desenvolveu habilidades básicas na primeira infância”, explica Miram.

Lenir Rosa André, professora da Fundação Educacional de Divinópolis e presidente do conselho municipal de educação de Divinópolis (MG), acredita que, ao não se respeitar o tempo da criança, as instituições de Educação Infantil que insistem em forçar o aprendizado da leitura e da escrita acabam ensinando-as apenas a desenhar as letras. “A criança fica muito tempo repetindo, copiando, sentada em fila. Mas, para dominar a língua escrita, é preciso dominar um sistema simbólico muito mais complexo”, defende Lenir. Para ela, a imaginação e a representação desenvolvidas através da manifestação de outras linguagens, como nos jogos simbólicos e corporais, também são bases fundamentais para se iniciar a aquisição da escrita como esperado na Educação Infantil.