O ensino sobre a ditadura militar brasileira na sala de aula
Em entrevista, a professora Miriam Hermeto de Sá Motta, do Departamento de História da UFMG, fala sobre a importância de entender o presente a partir do ensino de um aspecto importante da história recente do Brasil: o período da ditadura militar
Geral • Quinta-feira, 20 de Março de 2014, 15:40:00
No dia 31 de março, o Golpe Militar no Brasil completa cinquenta anos. Para a professora Miriam Hermeto de Sá Motta, do Departamento de História da UFMG, o assunto pode ser abordado pelos professores nas salas de aula desde a fase de alfabetização até o ensino médio. Em entrevista ao portal do Ceale, ela fala sobre as heranças da ditadura militar no Brasil, as dificuldades encontradas pelos professores ao ensinar esse tema, a diferença entre abordar o Golpe em 1964 e o período da ditadura militar, dentre outros aspectos.
Quais são os vestígios que a ditadura militar deixou no Brasil? Por que é interessante abordar esse assunto na sala de aula?
[A Ditadura] é uma temática crucial para trabalhar na educação básica porque ela informa muito sobre o que é hoje o Brasil. Não estou querendo dizer com isso que a ditadura mudou completamente o Brasil; na verdade. a gente vê grandes traços de continuidade antes da ditadura, durante a ditadura e depois da ditadura. Mas foi um momento importante inclusive em termos de políticas sociais, políticas econômicas, políticas culturais, que instituiu uma série de coisas que hoje são naturais na sociedade brasileira. Se por um lado havia o cerceamento de direitos civis básicos, ir e vir, expressão, a própria vida, isso conviveu na ditadura militar com a massificação da educação pública. E essa geração de hoje, de 20 ou 30 anos, já foi uma geração que teve direito à escola como princípio, não teve que questionar isso nem lutar por isso. Em grande medida, eu acho que não se valoriza esse direito tanto quanto se deveria, porque ele está aí naturalizado. Eu penso que esse movimento de desvalorização de princípios democráticos pode estar relacionado ao desconhecimento do passado recente do Brasil e do processo de lutas e conquistas, que em grande medida passa por essa dinâmica social da ditadura militar, para a conquista desses direitos.
Poderia analisar o ensino sobre o golpe militar de 1964 e o período de ditadura militar brasileira na educação básica?
A temática da ditadura militar é muito pouco trabalhada na educação básica hoje no Brasil. Talvez por uma questão de tradição escolar: o professor acaba se ocupando mais de temáticas consagradas e, quando chega no fim do ano, não tem tempo de trabalhar com a temática da ditadura militar, que é relativamente nova, é uma história recente do país.
Tradicionalmente, a ditadura militar é trabalhada em duas séries: no 9º ano do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio, que são exatamente os anos de conclusão. No 3º ano, às vezes o tempo é um pouco maior, porque existe a pressão do vestibular, e a ditadura militar, há alguns anos, vem sendo tema recorrente dos vestibulares e agora do ENEM – e continuará sendo. Então, começa a haver uma pressão imediata no ensino médio, que é utilitária.
Diria que existe uma idade específica em que é mais interessante abordar esse tema?
Depende do tipo de abordagem. Falar em revolução para alunos de primeiro, segundo ou quarto ano, é complicado. Mas pode-se trabalhar a partir de outra abordagem, por exemplo, a ideia do letramento a partir da leitura documental. Pode-se trabalhar com entrevistas com essa temática, relacionadas a temas mais próximos da vivência dos alunos, que foge inclusive daquilo que se trabalha como algo clássico na ditadura, que é a ideia da tortura. Você pode achar outras formas de trabalhar o período da ditadura, inclusive de uma forma que rompe com a ideia de que tudo na ditadura militar brasileira foi dominação ou resistência.
Quais seriam as maiores dificuldades para os professores em relação ao ensino sobre o golpe e a ditadura militar nas escolas?
O que a gente tem observado [em um projeto da UFMG] é que essa temática, quando trabalhada, é tratada muito "en passant" [de passagem]. Com as jornadas de julho, houve certa pressão social para o trabalho com o tema. Aí a gente encontrou outro traço muito comum para trabalhos pedagógicos com tema de história recente ou de história do tempo presente: em geral, professores que viveram os anos da ditadura militar ou os anos de redemocratização trabalham com as suas próprias memórias. O que também é muito comum nos livros didáticos: autores ainda hoje trabalham mais a partir da memória (não só a sua, mas a de sua geração) do que com pesquisa.
As próprias pesquisas sobre a ditadura militar, o campo da historiografia sobre a ditadura militar, é relativamente pequeno e recente. Embora eu não acredite que a historiografia seja a principal referência para a disciplina escolar (há também as demandas sociais, a memória, o arcabouço cultural, que são tão importantes quanto a ciência de referência), ela é um dado significativo. E só agora essas publicações começam a ficar mais acessíveis e começam inclusive a chegar junto ao público docente.
Estamos falando de cinquenta anos do Golpe. Já é possível tomar uma distância um pouco maior. E com isso eu não quero dizer que não seja possível fazer história do tempo presente. É possível, mas muda a reflexão quando se toma alguma distância. Muito recentemente, houve a abertura de arquivos importantes. A gente tinha uma dificuldade de achar fontes, achar documentos para pesquisa. Os documentos eram basicamente fontes orais – e, em geral, fontes orais militantes, porque quem tinha trabalhado, por exemplo, no Departamento de Ordem Política e Social- Dops, não queria falar. Agora então é que vamos ter um pouco mais de elementos para pensar sobre esse período de maneira mais reflexiva, menos no calor dos sentimentos e das memórias de quem viveu só o período. É um tipo novo de historiografia que vai se fazer e que vai favorecer as escolas.
Existe diferença entre trabalhar em sala de aula a ditadura militar, como um período de nossa história, e trabalhar o Golpe de 1964, que pode ser visto como um marco desse período? Como cada um pode ser abordado?
Em termos metodológicos, o Golpe é um evento de curta duração, portanto é diferente de pensar o processo de longa duração da ditadura militar, de 21 anos. Você tem que lidar com contextos diferentes: uma coisa é pensar o Golpe, os condicionantes e os fatores imbricados; outra coisa é pensar no período da ditadura todo, inclusive com uma dinâmica de arrefecimento da violência e recrudescimento da violência, arrefecimento da política econômica e recrudescimento da política econômica... Para fazer isso, a gente trabalha na disciplina escolar de História com periodizações, por exemplo. É muito comum a gente ver a ditadura militar brasileira nos livros didáticos dividida em alguns períodos. Pegar todo o processo nos permite trabalhar com essa dinâmica de construção de relação entre diferentes grupos sociais e como esses grupos sociais vão conquistando mais poder ou não em determinados contextos a partir de determinados interesses e ações. No Golpe, você tem um momento pontual, quem são os sujeitos que agiram, como estava a sociedade naquele momento, o papel dos próprios militares, do empresariado ou dos partidos (mais de dois, diferentemente do período de Ditadura Militar). Mas ambas são possibilidades muito ricas para se pensar o passado recente brasileiro.
Indica algumas conexões que podem ser feitas pelo professor entre o momento presente do país e o contexto de ocorrência do golpe?
Essa é uma pergunta que tem rondado muito o Brasil, especialmente depois das jornadas de julho. Há uma ala da sociedade que tem medo de um novo golpe e uma ala da sociedade que pede um novo golpe. Isso, nas redes sociais, por exemplo, tem sido muito comum. É possível fazer essa conexão. Mas, se você me perguntar se eu acho que hoje um novo golpe militar é viável, eu diria que não. As configurações política brasileiras hoje são muito diferentes das de 1964. Inclusive, a força das forças armadas é muito menor na sociedade brasileira hoje do que era em 1964. A própria organização interna das forças armadas politicamente é muito menor. É grande em termos de corporação e funcionamento disciplinar, mas a gente não vê um papel político das forças armadas no Brasil hoje. Então é possível fazer essa conexão, não para dizer que é a mesma coisa, mas exatamente para tentar compreender o que é semelhante e o que é diferente.
Por Izabella Lourença