“O foco da prática pedagógica é a criança”
Em entrevista ao Letra A 56, a professora Mônica Baptista, da Faculdade de Educação da UFMG, reflete sobre o cenário estabelecido pelas políticas educacionais para a educação infantil
Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 13:55:00
Muito se discute atualmente sobre os novos formatos e definições para a educação infantil. Para Mônica Baptista, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de MInas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil (NEPEI/FaE/UFMG) e do Ceale, em meio ao cenário de mudanças ocasionadas pelos documentos normativos mais recentes, é preciso relembrar e reafirmar que a centralidade da educação infantil está na criança e na busca pela ampliação das suas experiências.
A Política Nacional da Alfabetização (PNA), implementada em 2019, colocou em foco a perspectiva de introdução do processo de aquisição da escrita na primeira infância e a adoção do método fônico na prática docente. Já o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) trouxe como projeto para 2022 a produção e distribuição de livros didáticos para a educação infantil. Ambas as propostas vêm recebendo críticas de pesquisadores da área, pois retiram a autonomia dos professores e das professoras quanto à elaboração e à condução da dinâmica em sala de aula, além de determinarem objetivos que não condizem com o que é defendido para a educação infantil.
Nesta entrevista ao Letra A, convidamos a professora Mônica a refletir sobre as novas políticas educacionais para a educação infantil e o impacto que elas têm no trabalho docente e no desenvolvimento das crianças.
Por Isabella Lino
A BNCC e a PNA introduziram recentemente de forma mais enfática no campo educacional a perspectiva de antecipação do início do ciclo de alfabetização para a primeira infância. Qual a sua avaliação sobre essa proposta e quais são os impactos que o ensino do sistema de escrita na educação infantil pode gerar para a criança?
Bom, em primeiro lugar, a BNCC do Ensino Fundamental que fez isso, certo? Sem ouvir o apelo, os clamores e o movimento que sempre foi feito no sentido de não antecipar um resultado que é esperado para o ensino fundamental, que é a alfabetização. Então, a gente precisa entender um pouco melhor que nós temos uma antinomia, vamos dizer assim, entre o Plano Nacional de Educação, que diz que a criança deve estar alfabetizada até o terceiro ano do ensino fundamental, e a BNCC, que passou por cima dessa legislação, porque o PNE é uma legislação, e decretou que precisa ser até os 7 anos, né? Então, nós temos aí um problema que não é só legal, normativo, mas um problema de concepção.
Você me pergunta qual a implicação disso. A implicação é que a educação infantil precisa ser entendida como a primeira etapa da educação básica, que tem especificidades em relação ao ensino fundamental. Nós que atuamos na educação infantil sempre insistimos nessa ideia de que a alfabetização deve ser entendida como uma ação sistemática, planejada, executada e finalizada no ensino fundamental. Isso não quer dizer que a educação infantil não tenha um compromisso, uma responsabilidade com o processo de apropriação da linguagem escrita pela criança, né? É diferente da alfabetização. É como se a alfabetização fosse um conjunto maior e se apropriar da linguagem escrita envolvesse uma das questões do que é estar alfabetizado. Então, na educação infantil a gente pensa que desde que o bebê chega para nós, que pode ser de 0 meses, porque a nossa lei diz de 0 até 5 anos completos, esse bebê já está, de certa maneira, vivendo o processo de apropriação de linguagens e vai chegar até ele esse processo de apropriação da linguagem escrita. Então, a educação infantil tem um papel importante, mas não é nela que se conclui a alfabetização.
A implicação de antecipar é desconsiderar as especificidades desse ciclo didático de formação. A gente tem dito muito que se você pensa no currículo pelo fim ou pela finalidade, que é estar alfabetizado, você toma isso como orientação, alfabetizar as crianças pela BNCC aos 7 anos. Você vai trabalhar a criança de 7, de 6, de 5, de 4 com essa finalidade. Então, a gente quer envergar essa vara e dizer, em vez disso, “olha o processo, olha como essa criança vai se apropriando da linguagem e como ela vai compreendendo que é possível representar o mundo, os sentimentos, as coisas que estão no mundo a partir de diferentes linguagens e que esse processo, com o auxílio de boas mediações, vai fazer com que ela se aproprie de mais uma linguagem: a linguagem escrita”. Então, a gente fala do neném para o ENEM e não do ENEM para o neném, né, invertendo aí essa lógica curricular.
Há entre os educadores o receio de que a ideia de alfabetização na primeira infância compreenda também a introdução de práticas pedagógicas que são tradicionais do Ensino Fundamental, assim como a perda do lúdico. Qual é a sua opinião sobre isso? É possível que exista a introdução mais efetiva da cultura escrita sem que se modifique os propósitos e as características da educação infantil?
Na sua pergunta está imbricada outro aspecto importante desse fenômeno da alfabetização e da relação da alfabetização com a educação infantil que é a ideia social, não só dos profissionais da educação, mas uma ideia que está na sociedade, que “quanto mais cedo, melhor”. Quanto mais cedo a criança aprender a ler e escrever, mais status ela vai ter, mais ela se mostra inteligente, mais a família comemora, né? Porque, claro, é um aprendizado importante que modifica as nossas vidas, nossa relação com o mundo etc. Mas essa ideia de que isso deve acontecer o quanto antes é muito prejudicial do ponto de vista dessa aceleração, [que] vai fazer com que outras coisas deixem de ser feitas com essa criança e por essa criança.
Mas além de antecipar essa prática, existe a ideia de que a antecipação só pode ser feita de uma determinada forma. Então, há o senso comum de que para alfabetizar só existe uma maneira, né? Legitima-se também uma determinada prática que nós, pelos estudos e pelo conhecimento teórico que temos, já estabelecemos que é absolutamente inadequada. O que são práticas legitimadas socialmente? Aquelas de copiar, de decorar, de fazer treinos motores, de fazer treinos perceptivos visuais, como se não houvesse outro jeito de alfabetizar que não seja esse maçante, desinteressante, desvinculado das práticas sociais de leitura. Então, as duas coisas, tem que ser muito rápido e só pode ser desse jeito, são muito prejudiciais para a criança.
Na segunda parte da sua pergunta, a resposta é sim, existem muitos jeitos de fazer isso respeitando as características da infância e, no nosso caso, respeitando as características da primeira infância. A criança, quanto menor, mais apreende o mundo integralmente. Então, esse trabalho precisa ser pensado conjuntamente com as outras linguagens, as outras áreas do conhecimento e com os outros interesses que essa criança tem, respeitando essa visão holística que ela tem em relação ao mundo, né?
E a outra ideia está nas Diretrizes Curriculares Nacionais, na Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil, que é tomar brincadeira e interações como eixo da prática pedagógica. Então, a brincadeira é essa ideia de que a criança aprende o mundo por meio da brincadeira, não é um detalhe, não é porque é mais gostoso, não é porque ela vai ficar mais feliz, é porque é assim que ela compreende o mundo. A brincadeira constitui a cultura infantil. Então, trabalhar na educação infantil, qualquer que seja a área, o campo da experiência, a disciplina, precisa partir da brincadeira como essa ação da criança sobre o mundo, essa capacidade de fantasiar, as repetições, os ritmos, a brincadeira com os sons, tudo. E as interações, porque a gente se torna humano pelas interações. A gente aprende as culturas, os bens culturais, através do outro. Então, é importante que essas interações ocorram no plural, interações das crianças com outras crianças, com vários adultos que existem naquela instituição, nas famílias e interações com objetos culturais mediados por outros agentes, outros sujeitos.