“O foco da prática pedagógica é a criança” | parte 3


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 14:07:00

 

Preservar tanto o protagonismo da criança quanto a liberdade do professor dentro da sala de aula, porque é ele que está em contato com a criança diariamente, certo?

Exatamente.
 

Quais são os maiores desafios enfrentados atualmente pelos professores e as professoras da Educação Infantil no que se refere à questão da alfabetização? No que isso atravessa as outras questões que a Educação Infantil enfrenta?

Bom, hoje, eu diria que o maior desafio das professoras é lutar contra uma concepção conservadora, autoritária e ultrapassada de infância, de educação para a infância. Mais do que os problemas materiais, que ainda são grandes, eu acho que é uma luta por isso que você estava dizendo, da autonomia dos docentes, autonomia de cátedra, porque nós corremos muito risco. E uma das consequências que eu vejo imediatas e perigosíssimas é a ideia da avaliação em larga escala. Então, parece que tudo vem sendo amarrado para dizer que se esse professor ou se essa professora não trabalhar dentro desse paradigma, dessa teoria cognitivista, porque eles chamam erroneamente de únicas evidências científicas que existem, essa professora vai ser avaliada por isso. E isso é muito grave, porque vamos supor que você tenha compreendido o que eu tentei explicar aqui, que é uma outra concepção, bem diferente dessa, você vai ser avaliada negativamente, porque você não fez treinos para as crianças reconhecerem os fonemas, entendeu? Mas você leu muita literatura, sentou com as crianças, escreveu vários bilhetes para as famílias, foi em excursão, fez relatórios, serviu de escriba, nada disso vai ser avaliado positivamente. E também o resultado das crianças. Elas são capazes de fonetizar? De fazer uma relação entre fonemas e grafemas? Se não, elas vão ser mal avaliadas. Nós estamos falando de cuidar dos professores. 
 
E a outra coisa é que você vai responsabilizar as vítimas, coisa que o Brasil já faz há anos. Se a criança não aprender, a culpa é dela ou da professora, não vai ser culpa dessa política medonha. A política vai dizer: “não, o que é isso? Eu comprei livros, distribuí-os, fiz cursos online e você que não aprendeu, porque alfabetizar nessa concepção é uma técnica muito simples de ser feita". Então, nenhum outro fator, como as condições materiais que a professora tem, a pobreza que atinge várias famílias, nada disso é considerado. Se as crianças estão indo mal, é porque a técnica foi mal empregada e se a técnica foi mal empregada, é porque é culpa da professora.
 

Na sua opinião, quais são os fatores primordiais para a construção de uma pedagogia da primeira infância?

Sempre surge essa pergunta que é eminentemente pedagógica. Como é que eu faço isso? É uma resposta que a pedagogia tem que dar e eu diria que ela já dá. Há muita discussão sobre as pedagogias participativas, a pedagogia ativa, a pedagogia da primeira infância. Eu falei um pouco sobre isso e vou tentar sistematizar. Primeira coisa, quando a gente diz que o foco da prática pedagógica é a criança, não é um slogan, é algo difícil de se fazer. 
 
Quando a gente diz que a centralidade é na criança, é organizar esse conhecimento que ela trás através de perguntas. Como Eduardo Galeano diz, eu não vou saber citar, mas em linhas gerais ele diz que a criança foi ao mar com o pai e nunca tinha visto o mar, segurou na mão do pai e disse: “pai, me ajuda a ver o mar”. É esse que é o nosso papel, né? Porque nós estamos vendo o mar, estamos vendo um tanto de outras coisas. E o mar é muito amplo. O papel do professor é organizar esse mar para que a criança consiga ver. Agora, quem expressou a vontade de ver o mar foi a criança. 
 
Não quer dizer que eu vou ficar esperando a criança dizer para a partir disso organizar o currículo. Porque essa criança precisa ser tomada em diferentes aspectos, né, o psíquico, o social, o individual, o histórico e o geográfico. Preciso olhar essa criança e o seu cotidiano, o que ela faz, como eu construo o dia a dia. 
 
 

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