Os sentidos de uma inovação no contexto da alfabetização

Editorial do Letra A 51


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 16:07:00

 
Gilcinei Carvalho e Isabel Frade - editores pedagógicos do Letra A
 
A inovação na alfabetização pode ser identificada especificamente em aspectos que envolvem o processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita e, mais amplamente, em questões educacionais relacionadas ao processo de escolarização. Também pode ser avaliada em relação a ideologias ou práticas que dimensionam certas expectativas produzidas pela sociedade e que, portanto, não se limitam ao contexto escolar. No entanto, as inovações no campo da alfabetização são historicamente relacionadas à sua transferência da esfera doméstica para a esfera das instituições escolares. A alfabetização passa, então, a ser uma das primordiais funções da escolarização. Assim, é a escola que faz surgir os métodos apropriados ao seu contexto de ensino e de aprendizagem. 
 
Entre o século XIX e o final do século XX, a divisão entre ‘tradicional’ e ‘moderno’ produziu cisões entre defensores de certos métodos, evidenciando posicionamentos teóricos diferenciados e produzindo certas práticas pedagógicas. Em meados da década de 1980, começa um movimento de negação dos métodos, capitaneado por alguns dos fundamentos produzidos por teorias construtivistas que evidenciaram que ‘não só de métodos vive a alfabetização’. A questão da necessidade de metodologias, agora no plural, estabelece um novo movimento no século XXI e ajuda a relativizar uma divisão polarizada entre o ‘tradicional’ e o ‘moderno’. 
 
Nesse sentido, sem tirar o mérito dos avanços teóricos e pedagógicos produzido pelas discussões sobre os métodos e sem tirar a presença do bom senso dos professores em problematizar essas questões, pode-se dizer que a oposição entre ‘novo’ e ‘velho’, entre ‘tradição’ e ‘inovação’ tende a limitar o debate. Essa limitação pode ser reconhecida pelo realce exagerado que se atribui à pedagogia escolar, mistificando-se, de forma simplista, certas soluções e menosprezando-se a relação constitutiva entre sociedade e alfabetização.
 
Se a mistificação ocorre especialmente na alfabetização, considerando seus conteúdos e modos de ensinar e aprender no período inicial de aprendizagem, isso não ocorre apenas pelas motivações internas ao campo, mas também pelas inovações ou avanços promovidos sobre as teorias de aprendizagem e sobre as metodologias. Esse foi o caso das relações estabelecidas, no Brasil, entre o ensino mecânico e por decoração e o método alfabético, entre o paradigma intuitivo e os métodos analíticos, entre o paradigma da escola ativa  e os métodos globais, entre as metodologias de alfabetização  e aqueles que mostram a importância do sentido das aprendizagens. Nessa última perspectiva podem ser citadas as metodologias de projeto, os jogos, as sequências didáticas. Ao seguir essa última tendência, são adotadas perspectivas amplas de alfabetização. Todo alfabetizador sabe que algo específico tem de ser feito, dentro dessas metodologias, para que as crianças se alfabetizem. Essa abordagem específica pode ser chamada de “o próprio do período de alfabetização” e esse próprio tem raízes na tradição, por causa da permanência de determinadas questões em função, por exemplo, da natureza do objeto de ensino. 
 
Em algumas situações, a inovação na alfabetização pode ser interpretada como uma “volta ao passado”, representando uma forma de resolver questões contemporâneas. Essa também é outra mistificação, especialmente quando as questões pedagógicas são enquadradas sem uma adequada contextualização social e histórica. Para alterar os índices de alfabetização, no Brasil, no último século, foi necessária a garantia de muitos direitos sociais à moradia, à escola, ao trabalho e ao acesso a bens culturais. Ou seja, a melhoria na alfabetização não se decreta por dentro nem por inovações pontuais; é fenômeno complexo decorrente de fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. Considerar esses inúmeros fatores é certamente relativizar uma solução que aponta o caminho da “volta ao passado”.
 
Se a alfabetização também dialoga com o funcionamento da cultura escrita e acompanha os sentidos dados à escrita em cada tempo, são muitos os apelos externos para avançar na forma de considerá-la. Quais os usos da escrita? Que novos suportes e contextos desses usos? Que novas linguagens dialogam com a alfabetização? As respostas a essas perguntas não são simples. Por essa razão, um melhor modo de enquadramento das questões que envolvem a alfabetização necessariamente passa por um diálogo mais constitutivo entre a escola e a sociedade, assumindo-se que a própria concepção de alfabetização vai se alterando em relação ao contexto sócio-histórico que favorece ou desfavorece certas políticas de ensino.