“Pai, me ajuda a ver o mar”

Editorial | Letra A 56


     

Letra A • Quarta-feira, 26 de Outubro de 2022, 01:57:00

 
Neste número podemos encontrar discussões sobre conquistas, abertura de novos horizontes que mostram avanços nos direitos, nas concepções, nas políticas, mas também retrocessos. Num plano mais estrutural e político, várias conquistas relacionadas à heterogeneidade do fenômeno educacional, à diversidade metodológica e epistemológica e à redução das desigualdades sociais são minadas pelas políticas conservadoras que querem tornar opaco um pensamento educacional emancipador e crítico. Nossa matéria do Em destaque faz uma retrospectiva que não deixa dúvidas: em pouco tempo, governos conservadores conseguem destruir conquistas históricas, o que nos leva a um estado permanente de alerta e resistência. 
 
No entanto, há espaços para a utopia e para demonstrar que há conquistas, epistemologias e modos de pensar e praticar a educação em seu sentido amplo. A menção que Mônica Correia Baptista, nossa entrevistada neste número, faz ao texto de Galeano, nos ajuda a sintetizar uma ideia fundamental que sustenta uma concepção de desenvolvimento humano e aprendizagem: a da mediação do social em todas as formas de experiências que ajudem a formar crianças ativas e críticas frente aos fenômenos naturais, culturais, sociais, históricos. 
 
Numa ideia de educação ampla, a crônica de Paulo Bernardo, um dos produtores do projeto editorial do Jornal Letra A em seu começo como periódico, é na casa, nas livrarias, nas bibliotecas que vai se formando o leitor, singular nas suas experiências, às vezes reguladas, às vezes livres, mas participante de um mundo social em que alguns bens culturais estão abertos ao acesso, desde a mais tenra idade.  Sempre descobriremos os mediadores que abrem as portas para essa “epifania” com autores, livros, descobertas... Ah, como seria a experiência social com os livros se o acesso a histórias de toda ordem fosse dado, desde o início? É tanto mar, tanto mar para muitos e muitos outros não conheceram o mar e precisam da mão de mediadores. Daí a importância da escola para todos e não pode ser a escola que censura, restringe, reduz oportunidades 
 
Nesse sentido, quando as crianças entram mais cedo na escola, a partir da conquista do direito à ampliação da escolarização na educação infantil, é necessário que haja mediadores, objetos culturais, infâncias vividas em sua plenitude e o mar, que tem tantas linguagens, tantas surpresas a serem descobertas, vai se descortinando nas interações, nas possibilidades de ouvir histórias, de manusear livros literários e informativos, de diálogo com as crianças e com seus modos singulares de apropriarem das experiências. Se estas foram concepções reforçadas na prática e na pesquisa e configuram conquistas alcançadas a “duras lutas”, não é possível aceitar retrocessos.    
 
Podemos dizer que nosso modo de ver fenômenos da educação escolar precisam ser decolonizados, sobretudo quando aprendemos com os movimentos sociais que os modos de ser precisam valer para construir um mundo impensado, em que o bem estar de todos, o respeito e o reconhecimento da diversidade seja um fim. Como assinala Luis Fernando de Oliveira em nosso dicionário: “Pedagogias decoloniais é produção de conhecimento junto/com os movimentos sociais, é aprender a desaprender as marcas coloniais de nossa formação e reaprender novas perspectivas de mundo, enfim, é aprender a desaprender para reaprender novas posturas, novas ações de luta, novas ideias para um Bem Viver.”
 
Nesse sentido, dar luz à literatura afro-brasileira, que a seção Livro na Roda faz, neste número, mostra fenômenos de resistência, de reposicionamento de identidades construídas para os negros, para que, através da literatura, sujeitos conheçam a diversidade de corpos, de culturas. Mas uma realidade que é dada a ler, cujo repertório cultural construído socialmente deixa opaca a diversidade e as epistemologias negras, precisa ser criticado e apresentado às crianças e jovens através da mediação, como afirma o escritor Fausto Antonio, também entrevistado neste número: “Eu não trabalho com essa redução de que criança pode ler qualquer coisa. As crianças precisam receber uma formação e ter um apoio dos mais velhos, para poder ter acesso a uma literatura de alto nível, que é o que eu pretendo produzir sempre.”  
 
Há muitos mares a serem navegados: os da política, os da pedagogia, os das epistemologias, para nos lembrar que nuances, profundidades, cores, movimentos, prazeres e perigos fazem parte das conquistas e dos movimentos de resistência.