Pode-se falar em defasagem na aprendizagem da leitura e da escrita no contexto da pandemia?

Troca de Ideias | Letra A 57


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:07:00

Anna Helena Altenfelder - Presidente do Conselho de Administração do Cenpec, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que promove equidade e qualidade na educação básica pública brasileira.

De maneira geral, entendemos a defasagem de aprendizagem como a distância entre aquilo que efetivamente uma aluna ou um aluno, ou grupo de alunas(os), se apropriou e desenvolveu em termos de conhecimentos, habilidades e competências daquilo que está prescrito nos documentos curriculares oficiais.

O fenômeno, que historicamente faz parte da realidade de um número significativo de estudantes, escolas, redes e sistemas, exige uma compreensão mais ampla para evitar o acirramento das enormes desigualdades educacionais existentes desde sempre na educação brasileira.

É preciso ultrapassar a cultura do fracasso escolar que naturaliza que estudantes não aprendam, sejam reprovadas(os), estejam em distorção idade-série ou ainda abandonem a escola a partir de marcadores como cor, raça, nível socioeconômico e território.

Nesse contexto, não podemos negar e nem mesmo relevar o fato de que alunas e alunos tiveram oportunidades desiguais de vivenciar atividades educativas planejadas e organizadas por profissionais, com uma intencionalidade clara, para se alcançar o fim específico da apropriação da leitura, escrita e oralidade.

Parcela importante das(os) estudantes — principalmente as(os) mais pobres, negras(os), indígenas, quilombolas e com deficiência — não tiveram atividades educativas em quantidade e qualidade suficientes durante essa pandemia para garantir que aprendessem aquilo que têm direito e está consolidado nos documentos oficiais. Portanto, só faz sentido falar em defasagem de aprendizagem na leitura e escrita se inserimos a discussão na lógica da garantia do direito e da promoção da equidade.

Mais do que falar, é preciso enfrentar e, para tanto, é necessário fortalecer a capacidade institucional das redes e sistemas de ensino. Isso implica em propor, coordenar e implementar políticas públicas efetivas, eficazes e eficientes para que, a partir da lógica da equidade, gestoras(es) nas escolas e professoras(es) nas salas de aula possam intensificar e fortalecer situações de aprendizagem.

Com isso, ajudamos a garantir que todas e todos se apropriem da leitura e da escrita, para que possam ter uma trajetória escolar de sucesso e completar seus estudos para ter condições de atuar na sociedade de forma responsável, justa e solidária.

 

Maria Teresa Gonzaga Alves - Professora Associada do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação, da Faculdade de Educação, UFMG. Líder do Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede).

O fechamento das escolas devido à pandemia da Covid-19 provocou mudanças drásticas no cenário educacional mundial. Educadores e pesquisadores levantaram preocupações sobre os seus efeitos no aprendizado dos estudantes e no aprofundamento das desigualdades educacionais.

Revisões de literatura recentes mostram que essas preocupações não foram em vão. Os impactos negativos da pandemia na aprendizagem foram observados em diversos países. As crianças menores e as de origem social desfavorecida foram as mais prejudicadas. Aquelas que frequentaram a escola e estavam alfabetizadas antes do fechamento das escolas sentiram um pouco menos esses efeitos do que as que atingiram a idade escolar depois. No Brasil, Mariane Koslinski e Tiago Bartholo, da UFRJ, também constataram os efeitos negativos da pandemia nas crianças da educação infantil na fase da alfabetização.

Diante dessas evidências inequívocas, podemos também nos questionar: as crianças não aprenderam ou elas não viveram o processo de ensino-aprendizagem?

No caso brasileiro as estratégias de ensino adotadas durante os quase 300 dias sem aulas presenciais foram muito desarticuladas, o que aprofundou as desigualdades educacionais. Isso é o que revela a pesquisa “Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil” do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Entre as escolas públicas, onde estudam 83% dos alunos da educação básica, a entrega de materiais impressos foi a estratégia utilizada por 95% delas. Em seguida, 53% disponibilizaram aulas gravadas na internet. Metade delas deu suporte aos alunos e suas famílias para a elaboração e o desenvolvimento de planos de estudos, mas apenas 21% os orientaram para o uso dos programas de ensino não presencial.

O protagonismo do processo de ensino-aprendizagem foi transferido para as famílias, que têm recursos econômicos, sociais e culturais muito distintos. Poucas crianças se beneficiaram disso. Ademais, a maioria dos domicílios não é adequada para o ensino à distância, sobretudo para as crianças pequenas. Se em tempos normais as diferenças entre as famílias são mitigadas pela escola, no contexto da pandemia elas se aprofundaram.

Portanto, um legado que essa experiência deixará para a educação é o maior reconhecimento da importância da escola e de suas professoras para garantir o direito das crianças aprenderem a ler e a escrever.