Por uma reflexão pedagógica sobre inclusão digital | parte 2
Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 21:20:00
Não é apenas fornecer o equipamento, isso?
Exato. É a escola que tem que dizer qual é a sua necessidade. Repito isso porque, às vezes, o Governo Federal começa a querer comprar coisas – compra não sei quantos milhões em computadores e manda para as escolas; monta um laboratório que depois não funciona. Então, não é isso que é inclusão. A inclusão digital significa: atender a necessidade do usuário. Logo, é o usuário que precisa dizer, nesse caso, as escolas públicas, qual é a necessidade.
Mas as escolas brasileiras têm um problema muito grave e, recentemente, inclusive, o presidente vetou o apoio à banda larga para as crianças estudarem. Havia um projeto de lei que estipulava que o MEC forneceria recursos para que as crianças tivessem acesso à internet para estudar em casa, e o Presidente da República não autorizou o uso de recursos públicos para esse fim.
Você pesquisa sobre as relações entre educação e mídia. Como a educação midiática pode contribuir para a alfabetização e o letramento das crianças?
Essa é a nossa pergunta de pesquisa agora, não só na alfabetização e no letramento escrito, mas também na aquisição de conteúdos escolares. Uma das constatações das pesquisas realizadas na pandemia é que aquilo que a gente supunha que aconteceria e não aconteceu. Ou seja, segundo nossa suposição, as crianças mais velhas e os adolescentes iriam se virar muito bem com a tecnologia. No entanto, eles tiveram dificuldades com a tecnologia, porque falta alfabetização midiática, falta letramento no uso desses recursos para aprendizagem. Eles apresentam um letramento tecnológico de saber acessar, de criar uma página, de fazer um post, de curtir um post, de ouvir música, ou mesmo, de assistir vídeo no YouTube. Mas, o letramento necessário a uma aprendizagem autônoma, a uma “autoinstrução”, que a gente diz, ainda falta.
Pensávamos que, se os professores conseguissem entregar às crianças e aos adolescentes um conjunto de tarefas que eles pudessem executar pelo computador ou pelo celular, daria certo, só que não deu, porque tem isso, falta conhecer a linguagem, falta poder produzir em diferentes linguagens, falta ainda um letramento midiático nas estratégias de domínio.
Muitos adolescentes e crianças têm dificuldade em saber o que é verdade e o que não é verdade, ou mesmo, buscar elementos para saber a confiabilidade de um conteúdo ao qual eles podem ter acesso. Além disso, eles têm muita dificuldade na pesquisa: os alunos estão acostumados a fazer a pesquisa, aquela que a escola sempre pediu, que a primeira resposta é a que vale, aquela coisa que já vem pronta, que você não precisa elaborar. Então, muitas das pesquisas que eles fazem é copiar e colar o que encontraram, porque também muitas vezes os professores fazem perguntas cujas respostas são “acháveis”.
É do letramento midiático que você produz perguntas para as quais é preciso ter trabalho, é preciso pensar, é preciso articular informações diferentes, buscar informações em fontes diferentes e elaborar essas informações. Isso é algo que a escola não tem ensinado. Então, muitos professores – a gente entrevistou 40 professores de [ensino] fundamental e médio – disseram que ficaram surpresos porque os meninos e as meninas não sabiam fazer pesquisa. Os alunos pediam pesquisa achando que essa era uma tarefa fácil, já que eles estavam com o celular na mão e o que vinha era isso, uma cópia do que foi encontrado. É por isto: a gente não ensinou que pesquisa significa articular informações diferentes, é produzir algo novo a partir das informações diferentes.
Eu não tenho dúvida de que o letramento midiático contribui para a aquisição de conteúdos escolares de maneira mais autônoma, de maneira mais autoral, de maneira mais bem elaborada. É preciso você ter domínio da ferramenta, domínio do conteúdo, domínio de como aquele conteúdo é produzido, das intencionalidades que existem por trás da produção dos conteúdos. Muitos não sabem, por exemplo, tirar os anúncios, fazer um perfil mais privado, de forma que não fique aparecendo anúncios o tempo todo, ou proteger os dados pessoais.
Agora, a questão sobre letramento midiático e letramento escrito na linguagem escrita, essa é a pergunta da nossa pesquisa de agora. E, então, a gente não tem uma resposta, ainda, porque a pandemia atravessou a realização dessa pesquisa. Era pra gente estar na escola desde março do ano passado, era pra gente estar na escola fazendo isso junto com as professoras, exercitando a tarefa de educação midiática junto com a alfabetização.
Como não confundir “consumo pelo consumo” com inclusão digital? E como a mídia-educação pode contribuir para que esse consumo se torne cada vez mais consciente?
Exatamente isso, se você não tiver um debate sobre os objetivos, não vai adiantar ter tecnologia, porque você não sabe o que fazer com ela, você não sabe aonde quer chegar com ela. Foi o que aconteceu com o ProInfo. Saímos colocando computadores nas escolas: bota computador, monta laboratório, mas qual é o objetivo disso? Que tipo de trabalho a gente vai fazer aqui? Qual é o olhar crítico? Será que precisa mesmo? Será que precisa disso tudo? Será que não temos outras maneiras de incluir digitalmente? Por exemplo, uma escola com internet wi-fi pode conseguir resultados muito mais interessantes do que com seu laboratório de informática com os desktops. Então, acho que é isso, a gente só vai segurar, só vai impedir o consumo pelo consumo com um debate crítico e político.
A gente não tem um debate político no Brasil sobre qual é a tecnologia que atende a educação, qual é a tecnologia que atende as crianças, ou sobre o que é preciso para que a oportunidade oferecida pela tecnologia seja usufruída da melhor maneira possível. E que também a gente possa proteger as crianças dos danos – excesso de tempo de tela, excesso de imagens inadequadas, excesso de publicidade infantil etc.
Ter produtos que possam ser utilizados, reutilizados e transformados em outros materiais é outra questão importante. Eu pedi um trabalho aos meus alunos de licenciatura exatamente sobre a digitalização da escola, eles encontraram e trouxeram uma plataforma que vende tudo, vende os produtos educativos, vende softwares, vende tudo. E aí trouxeram aquilo com uma alegria porque tinha um software para alfabetização, um jogo digital para a matemática, só que tudo pago. Tudo pago! E aí eu disse: “Gente, onde é que vocês estão com a cabeça? Vocês vão pra escola pública, vocês são professores da escola pública. O que é isso aí?” A gente vai substituir o livro didático por quilos e quilos de softwares educativos que envelhecem rápido também, do mesmo jeito que o livro didático. Então, acho que falta um olhar crítico; falta, de novo, uma política pública.
O touch screen fez uma revolução à parte e permitiu um contato mais intuitivo com a tela. Vemos isso pela facilidade das crianças no uso desse recurso. O que você pensa sobre isso?
Essa tecnologia foi desenvolvida para ser amigável, sedutora e viciante. Então, para isso a gente vai ter um olhar crítico também, porque ela é feita para cativar. A gente fez uma pesquisa com bebês e o acesso deles a smartphones. É muito impressionante o quanto eles aprendem rápido, porque é exatamente isso: a tela responde muito rapidamente e isso os seduz muito; então, eles vão com a mão aberta quando são bem pequenos, com 1 ano, 1 ano e 2 meses, eles já estão batendo as mãozinhas na tela. Na medida em que a tela vai respondendo, eles vão refinando a relação deles com aquele equipamento, ao ponto de que, num certo momento, eles conseguem identificar um ícone. Mas, nunca, em nenhum momento das pesquisas que a gente fez, percebemos que há uma alteração psicomotora no uso do equipamento. O tempo do desenvolvimento da mãozinha e da motricidade fina seguiu sendo o mesmo, embora usando o equipamento que se supunha que o uso faria aprendizagem.
Ele é mais intuitivo, ele é mais amigável, ele é mais sedutor, mas o uso não faz a aprendizagem. Então, é preciso você ter paralelamente ao uso uma série de informações, instruções e discussões sobre o que significa usar e para que serve aquele uso e aonde você quer chegar com ele. Se não, você tem um acesso acrítico da tecnologia, o que não é muito bom para as crianças.