Por uma reflexão pedagógica sobre inclusão digital | parte 3
Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 21:27:00
O processo de alfabetização se faz só pelo uso da tecnologia?
Usamos o touch screen como imagem, mas nenhuma pesquisa detectou alteração na coordenação motora fina, mesmo a criança começando a usar o smartphone com 1 ano, 1 ano e pouco; a mesma coisa acontece com a estrutura cognitiva. É a estrutura que deve ir ao encontro da tecnologia, a tecnologia não vai modificar a estrutura cognitiva. A base pedagógica, a base da aprendizagem precisa ser dada pelos objetivos da aprendizagem e não por aquilo que a tecnologia fornece.
É isso que a gente precisa repetir muitas vezes, não tem ‘solucionismo tecnológico’. Ele caiu por terra com a pandemia. Muitos falavam “bota tecnologia na escola, eles vão aprender mais, eles vão aprender mais rápido. As crianças adoram tecnologia”. Olha o que aconteceu: na pandemia, se voltou à tecnologia e não asseguramos maior aprendizagem. Não houve aumento de aprendizagem, mesmo nas crianças em classes sociais mais altas, com equipamentos mais sofisticados; não foi o equipamento que produziu a aprendizagem.
A minha neta foi alfabetizada durante a pandemia e eu fiquei observando a professora. Era uma mulher de mais de 50 anos e alfabetizadora há trinta. O sucesso que a professora obteve não devia nada à tecnologia que ela estava usando, até porque ela tinha muita dificuldade de usar a tecnologia, era uma alfabetizadora de sala de aula, e, mesmo assim, ela conseguiu resultados extraordinários com o know-how de alfabetizadora que ela tinha e não com a tecnologia que ela estava usando. É claro que a professora colocou a tecnologia a serviço do seu conhecimento de alfabetizadora.
Então, é isso que eu acho que é o mais importante. Dizer que o conhecimento pedagógico, o conhecimento da aprendizagem, o conhecimento sobre estrutura cognitiva das crianças, sobre a cognição em si é o que vai guiar o uso da tecnologia para a aprendizagem, nesse caso para a alfabetização, e não o contrário. Não adianta montar uma parafernália, não adianta montar 50 milhões de jogos eletrônicos. Foi o que aconteceu com as escolas com maior poder econômico, maior poder aquisitivo, e vemos que não resolveu.
Como a pandemia da Covid-19 impactou as escolas e a inclusão digital de modo geral? Que questões surgiram ou ficaram mais evidentes com as mudanças repentinas?
Isso foi um impacto gigante e, assim, as escolas não estavam preparadas e os professores também não. Entre os que a gente entrevistou, que fizeram parte de outra pesquisa, uma coisa que constatamos, muito legal – claro que é um número muito pequeno que a gente não pode generalizar –, [é que] os professores que tinham hábito de fazer trabalhos de letramento digital antes da pandemia com os alunos tiveram resultados melhores, tanto deles próprios de conseguirem se virar melhor no ambiente digital, quanto com os alunos, com os quais eles tinham feito atividades de letramento digital no presencial. O letramento digital favoreceu o acesso dos garotos e muito mais a aprendizagem, porque eles não dependiam tanto do acesso, não dependiam tanto da presença ou da aula online, eles conseguiam dar conta das tarefas.
Todavia, faltou uma clareza maior de como se transpõe para o mundo digital as melhores práticas do mundo presencial. Muitos professores já se tornaram reféns das plataformas educacionais, da estrutura da plataforma e acabou que as práticas pedagógicas deles, que já funcionavam, que já estavam incorporadas, foram bloqueadas pela estrutura da plataforma que a escola contratou e, aí, os professores tinham que se adaptar a ela e não o contrário. Eu acho que é isso que foi o grande problema, não o fato de ter as plataformas em si, mas o fato de que a plataforma deveria servir à prática pedagógica dos professores e não os professores se submeterem à estrutura da plataforma, porque quem faz a plataforma não é da educação, não é professor, não sabe prática pedagógica. Quem cria a plataforma é quem conhece a tecnologia. Acho que esse foi um dos problemas na pandemia: um certo determinismo tecnológico. Mas o grande problema, você tem razão, foi a inclusão. Mais da metade das crianças brasileiras não tiveram acesso às tecnologias e não tiveram acesso às atividades online.
O ensino online não foi mais motivador também, foi o que apontaram os dados de uma de minhas orientandas. Eram 600 adolescentes do ensino médio público do Rio de Janeiro e a gente não constatou que eles se sentiam mais motivados na plataforma. Eles se sentiram mais motivados com o papel, com as tarefas em papel que os professores mandavam e com as conversas online com os professores. Essa desmotivação fez com que muitos abandonassem a escola completamente.
Entre os que ficaram, eles assinalaram que o que os motivou a ficar foi, de um lado, a conversa pessoal com o professor no online, que foi muito mais constante do que as conversas em sala de aula. Eles dizem assim: “na sala de aula o professor entrou, deu aula e foi embora; durante a pandemia eu falava com ele sempre que eu precisava.” E isso achei muito legal, isso é uma pista pro futuro, sabe? A ausência do professor foi o mais sentido. Eles queriam ver o professor, falar, estar com ele.
E, por outro lado, poder falar com o professor quando era preciso e não só na sala de aula, isso deu uma motivação enorme para eles continuarem estudando, porque podiam passar uma mensagem pelo WhatsApp. Mesmo que o professor não respondesse na hora, ele respondia depois e ainda tinha a aula online para conversar com o professor. Enfim, eu acho que esse é um aprendizado muito legal pro futuro, sabe?
Eles querem poder ter contato com o professor quando eles precisam do professor, quando eles estão estudando e surge uma dúvida, quando eles têm uma tarefa que não conseguem executar, isso fez toda a diferença para o aprendizado deles, poder perguntar ao professor como eles deveriam fazer aquela tarefa.
Então acho que é isso, acho que, de novo, a pandemia mostra que aquilo que a gente achava menor, que é a presença do professor ou o lugar dele, é o mais importante. E que aquilo que a gente supunha que era o mais importante, aparelhar as escolas, implantar a tecnologia, colocar computadores, não é o que desperta mais interesse, não é o que produz mais aprendizagem e não é o que gera mais motivação.
A pandemia mostrou que o processo de inclusão digital não pode ser dissociado da alfabetização e da educação midiática, correto?
Isso, exatamente. A inclusão, fechando a nossa conversa do começo, é pedagógica, o letramento é pedagógico, é cognitivo, não é tecnológico. Então a gente vai produzir inclusão digital ensinando a usar melhor, ensinando a pessoa a usufruir melhor daquilo e não promovendo apenas o acesso aos equipamentos. A inclusão não se dá por via tecnológica. Claro, se não tivermos acesso a equipamentos não vai ter inclusão nenhuma, mas o que precede é a aprendizagem do uso, o olhar crítico para o uso. Os saberes associados à tecnologia são infinitamente mais inclusivos do que o acesso em si à tecnologia.
Você tem pessoas com acesso à tecnologia que não são incluídas, porque elas não têm esses conhecimentos necessários para extrair da tecnologia o que elas precisam, elas acabam se submetendo à lógica da tecnologia. Quando a professora sabe muito mais do que a tecnologia, [sabe] sobre aprendizagem, sobre ensino, sobre as relações interpessoais, então não é ela que tem que se adaptar à tecnologia, a tecnologia é que tem que ser adaptada aos seus objetivos. Esse foi o grande aprendizado que tivemos durante a pandemia.