Portas para a literatura

A prática de mediação de leitura literária exercida pelos professores e como ela se dá ao longo dos anos escolares


     

Letra A • Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 16:07:00

 
Por Andreza Miranda
 
Na Escola Municipal Josefina Sousa Lima, instituição em que a professora Nilza Norma trabalha, em Belo Horizonte (MG), a atividade de mediação de leitura literária acontece da seguinte forma: “Geralmente no primeiro ano, que é o período em que eles estão iniciando mesmo o processo da leitura, levando em consideração o fato de eles não saberem ler, quase que diariamente eu faço uma leitura de um livro literário para eles.”
 
O exemplo da professora Nilza é uma das possibilidades que o professor tem para desenvolver com os alunos a leitura literária por meio da mediação, que se inicia no primeiro ciclo, com mais afinco, e pode perdurar até o final da vida escolar dos alunos, de maneiras diferentes. Tais modos começam a se alterar principalmente a partir do segundo ciclo, em que vários fatores começam a influenciar o espaço para a literatura na vida dos estudantes.
 
Lugares da mediação literária
 
O processo de formação do leitor literário deve iniciar-se no primeiro ano e ir até o nono ano do Ensino Fundamental, de acordo com o professor da Universidade Federal da Paraíba, Rildo Cosson. Ele acredita que a função de mediador de leitura literária desempenhada pelos docentes deve ser a de formar o leitor literário e que o problema que atinge grande parte das escolas é a falta de preocupação dos educadores em relação a isso. “Tem que começar no primeiro ano. Se o professor faz bem no primeiro, ele vai fazer bem nos demais anos. Aquela mediação que é feita para construir o leitor literário lá no primeiro ano é em espiral, ele vai ter que continuar ali ampliando, introduzindo novos materiais etc. Se, ao final do quinto ano, o aluno estivesse no processo de formação das competências literárias e tivesse dado continuidade, ele chegaria ao ensino médio capaz de ler qualquer obra canônica sem nenhum problema”, afirma Rildo.
 
O também pesquisador aponta que os professores de língua portuguesa não percebem que são professores de literatura também. “Eles se veem apenas como professores de gramática. Eles tendem a dominar todos esses aparatos da língua portuguesa, mas esquecem que são professores de literatura, que o aprendizado da língua passa pela literatura. Eles têm que formar o leitor e o leitor literário, uma coisa não anula a outra.”
 
Eliana Guimarães mostra, por meio de sua experiência, a forma como trabalhou com a literatura sem desvinculá-la do ensino da língua portuguesa e de suas regras: “É possível, pela literatura, o professor trabalhar outras habilidades; a gente fazia uma escrita coletiva, eles iam construindo, então eu já ia dando as orientações: ‘o que a gente pode usar aqui...’; evitava as repetições da oralidade, porque eles iam falando ‘aí, aí’; então eu mostrava outras alternativas linguísticas, fazendo todo esse movimento que faz parte das habilidades a serem desenvolvidas, integrado ao processo de formação do leitor.”
 
Muitos alunos possuem uma aptidão literária que independe da mediação dos professores e costumam levar para o ambiente escolar obras que eles estão lendo e que não fazem parte do acervo da escola. Diante disso, a professora Eliana sugere como a mediação literária pode ser realizada nesses casos: “É importante a gente valorizar também essas leituras, dar espaço para elas. Não ficar fazendo atividades com elas, mas conversar com o menino, intercalar isso, dizer ‘hoje nós vamos falar sobre algum livro que vocês tenham lido, cada um vai trazer um livro que leu e gostou muito’, e aí a tendência é eles levarem esses livros, as revistas em quadrinhos também, para intercalar isso. Porque aí você coloca a literatura que está na vida deles dentro da escola, e aí você permite que essa da escola seja vista por eles também.”
 
Desafios e alternativas para o segundo ciclo
 
“A gente observa que, no segundo ciclo, eles vão gradativamente abandonando os livros”, aponta Viviane Maia, Coordenadora do Programa de Promoção da Leitura do Livro na Gerência de Biblioteca da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. É possível notar esse mesmo tipo de relato vindo de vários professores, que vão percebendo dificuldades em realizar o papel de mediador literário, principalmente, a partir do quarto e do quinto ano do Ensino Fundamental. Eliana Guimarães, professora do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais, declara que “no quarto e quinto ano, a gente às vezes sente um pouco mais a agitação; as dificuldades que eu tive quando peguei o quarto ano foram de crianças que não estavam com a alfabetização consolidada, e que já tinham criado dentro delas um estigma de crianças indisciplinadas, que não participam de coisa alguma, e aí, para você conseguir mostrar e convencer que aquilo é uma coisa diferente, demora um pouco.”
 
Embora os desafios sejam latentes, é possível que o professor faça um trabalho interessante de mediação de leitura literária no segundo ciclo da alfabetização. Eliana Guimarães relatou seu desempenho em uma das turmas de quarto ano em que lecionou: “Então o dia da leitura era x. Nesse dia da leitura, eu lia com eles um capítulo, a gente conversava sobre ele, eles podiam ilustrar; tinha um movimento ali de que eles participavam. A gente nem fez muita escrita; era uma turma que estava consolidando ainda o processo de alfabetização. Então eles se colocavam no texto a partir do desenho, e a gente fazia escritas coletivas sobre aquele capítulo, na aula de português, que não seria, inicialmente, uma aula dedicada para a leitura.”
 
Existem diversas ferramentas para que os professores continuem desempenhando com mais facilidade o papel de mediadores de leitura literária, afirma a coordenadora da Gerência de Biblioteca da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (MG), Viviane Maia. Em seu município, ela lista o kit literário, em que obras de literatura são distribuídas para os estudantes da rede municipal; o programa Trilhas de Leitura, que vincula a participação dos alunos no Salão do Livro, e, a partir disso, são proporcionadas várias atividades baseadas no evento, como, por exemplo, conhecer um livro, saber comprá-lo, lê-lo e depois indicar para os colegas; a implementação da “Rádio Paulão”, na Escola Municipal Paulo Mendes Campos, que envolve a gravação dos alunos fazendo a leitura de fragmentos de obras literárias, [ouça aqui]; e o programa do articulador de leitura, política pública em que os educadores passam por uma formação oferecida pelo Gpell/Ceale e disseminam os conhecimentos adquiridos, relacionados à literatura, na escola em que trabalham. Viviane acrescenta que “o professor tem que ir mudando de estratégia. Uma estratégia que ele pensa que vai atingir determinado grupo de estudantes, mas um outro determinado grupo pode ainda não ser seduzido por ela.”