Prazer de ler, desprazer de mudar

Crônica | Letra A 55


     

Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 22:15:00

 
Maria das Graças de Castro Bregunci
 
Vivenciei recentemente um processo de mudança de moradia – algo que sempre suscita demandas de ajustes às configurações de um novo destino. 
 
A seção mais complexa e exaustiva, em cada uma de minhas mudanças, sempre foi a biblioteca – a desconstrução e a reorganização desse espaço que tem lastro histórico, familiar, escolar, em contínua mutação e expansão, memórias afetivas de muitas camadas. Ao comentar o peso dessa tarefa com amigos também às voltas com mudanças, constato as mesmas impressões.  São partilhadas por todos que gostam de ler, que constroem sua vida acadêmica e profissional imersos nesse espaço diferenciado, de referências e reverências. Alguns dizem que apreciam, nas mudanças, a oportunidade de reestruturar seus espaços e expurgar excessos; outros se desapegam em várias doações, permitindo que os livros circulem, troquem de moradas e leitores; e outros mantêm intocável seu tesouro, mesmo que seja a última parcela da mudança a ser reorganizada. Aspecto unânime, porém, é o investimento de tempo exigido por tais ações, rituais e decisões.
 
Em minha experiência, registro redução gradual em meu acervo e um enorme prazer em direcionar fluxos de leituras para outros. Gosto do tempo investido no arranjo das doações, na escolha de leitores e espaços que delas mais poderiam usufruir.
 
Mas, após essa complexa logística, sobram dilemas nas subjetivas decisões sobre o que não pode ficar fora do meu espaço vital. Gêneros preferenciais logo clamam por inclusão e negociação. Posso abrir mão de livros teóricos importantes em minha formação e atuação profissional, menos consultados atualmente. Mas alguns são tão enraizados em momentos cruciais de minha trajetória, ou de produções associadas a pessoas significativas... que merecem continuar perto de mim.  
 
Ao passar para a estante de literatura, tantos gêneros me dividem, antes do veredito de seu destino: inesquecíveis romances, circunscritos a passagens marcantes de minha história pessoal; os perenes por sua grandiosidade consagrada. Os autores de vários continentes, alguns velhos conhecidos, outros recém descobertos, com minha sensação de dívida. É certo que, quanto mais lemos, maiores são a gula, o efeito viciante, o nível de exigência, como bem expressou Borges: “muitos se orgulham do que escrevem; eu me orgulho do que leio”...
 
Recolho também minhas crônicas preferidas, que me deixam conectada com os dramas humanos cotidianos, e também mais leve, quando aguçam o humor, essa prerrogativa humana tão essencial. E, ao lado delas, reservo outra caixa para abrigar a literatura infantil, que me revigora nas leituras prazerosas com meus netos. 
 
Limpo e guardo com zelo os exemplares de poesia. Esses precisam envelhecer junto comigo – preciso sentir as marcas digitais e do tempo em suas capas e páginas amareladas. E novos dilemas emergem: as dedicatórias! Como abrir mão de uma obra que traz, na primeira página, um registro manuscrito que tanto me afeta? Alguém escolheu pensando em meu perfil e declarou essa intenção. Impossível não seguir para a nova morada uma dádiva tão preciosa!
 
Ao fim de um árduo trabalho, busco fôlego para dedicar uma caixa inteira para a coleção verde de capa dura e letras douradas, páginas que têm cor e cheiro de muitas décadas. Machado de Assis, completo, precisa continuar comigo. Não somente pelo valor de suas escrituras, mas pelo leitor que me iniciou a elas. Meu pai adquiriu essa coleção quando entrei na escola primária. Mas foi como um troféu para si mesmo – alguém que viera do campo para a cidade, com seu nível de alfabetismo apenas funcional. Gostava tanto de ler que se tornou meu primeiro e mais importante leitor-modelo, com intuições de um letramento literário nutrido por prazer. Reler as três dezenas de obras são fonte de reminiscências e gratidão. Mesmo que fiquem mal acomodadas, elas vão!  
 
O desprazer de mudar, para mim, consiste em dilemas desse tipo... restrições espaciais que se sobreponham ao prazer de se cercar de impressos. As possibilidades de leituras eletrônicas poderiam ser atenuantes, mas não suplantariam sensações da materialidade de um “mundo no papel”. Onde existirem reverência histórica, sensibilidade estética e afetiva – e apenas onde existirem – haverá muito prazer em ler e reler, descobrir e redescobrir autores, preservar suas criações. E isso, com certeza, não deveria mudar.