Quando o leitor encontra a literatura

Cada história ouvida desde criança, cada livro lido em casa ou na escola, das narrativas cotidianas às atividades mediadas pelo professor: toda leitura literária pode levar a novas experiências e conhecimentos no processo contínuo de formação do leitor


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 17:52:00

Por Poliana Moreira

No meio de uma tarde, uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental tem sua hora de “tempo livre”. Cada aluno pode escolher com o que brincar e como aproveitar aquele momento, enquanto a professora observa. Em um canto da sala, Samuel e Luiz brincam, até que se desentendem e acabam brigando. Samuel se levanta bravo e, com a cara emburrada, se isola em outro canto. Camila, que assistiu a tudo enquanto brincava de maquiagem, deixa sua atividade e cruza a sala para pegar algo. A garota vai até onde está Samuel com um livro nas mãos – trata-se do título A Raiva, que dias antes outra colega havia doado para a turma. Camila oferece o livro para Samuel e diz: “Olha, eu acho que esse livro vai ser bom para você”. Samuel se senta para ler, enquanto Camila retoma a brincadeira com as amigas. Após algum tempo, o garoto se levanta, guarda o livro e também volta a brincar. Ao fim da aula, a professora chama Samuel para saber o que havia acontecido. Ele conta sobre a briga e que ficou muito bravo com Luiz, mas que depois leu um livro que achou muito legal.

A cena descrita acima foi observada por Gabriela Rodella, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), enquanto acompanhava uma turma de alfabetização na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo (USP). Gabriela destaca a importância de eventos como esse e o significado por trás do ato da garota de dar um livro para seu colega, como forma de apoio após a briga. “O livro já faz parte da vivência deles: ela tinha lido e gostado. Depois, o garoto recebe essa ajuda e lê o livro, e acha aquilo legítimo, já que o livro realmente o ajuda a superar a raiva que está sentindo”, comenta Gabriela. Um momento tão corriqueiro pode ser uma das melhores formas de ilustrar os frutos da experiência literária e da formação de leitores, que já começa desde cedo. “É uma experiência que vai além da leitura literária; está ali inserida na vida deles como leitores, como colegas. Acho que a gente tem que conseguir trazer isso até o Ensino Médio e ir transformando as práticas de ensino de literatura a longo prazo”, propõe Gabriela.

Pensar a formação literária e os conhecimentos que constituem o campo da literatura, por meio de experiências significativas, é a proposta dessa reportagem do Letra A. “Quando você tem conhecimento, a experiência acontece de maneira diferente; o conhecimento permite ver coisas que você não veria se você não o tivesse”, afirma Rildo Cosson, doutor em Educação e em Letras e pesquisador do Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (Gpell), vinculado ao Ceale. Para ele, é na escola que se solidifica o trabalho para a construção conjunta entre esses dois elementos. “O que a escola tem que fazer é unir as duas coisas, porque, muitas vezes, ela está tão preocupada em passar o conhecimento, que esquece que ele tem que estar a serviço dessa experiência”, adverte Rildo Cosson.

 

O leitor vive histórias...

“O interesse por narrativas é inerente ao ser humano”, destaca Rildo. As crianças precisam de histórias para ter modelos no processo de construção da sua identidade e muitas delas acontecem em situações simples de sua vivência. Isso desde os momentos mais banais, como explica Rildo. “Pense, por exemplo, em uma mãe que explica ao filho: ‘se você colocar o dedinho na tomada, vai tomar um choque’, e faz o som de choque, põe a mão lá e faz uma cara feia...” Segundo Rildo, nesse exemplo, mesmo que o filho não entenda completamente as palavras, ele é capaz de compreender a situação. “É assim que a literatura fornece modelos, para todos nós, desde crianças”, completa Rildo.

Essas narrativas, que começam de forma tão simples, estão presentes na literatura e exercem grande importância no processo de socialização. “A importância da literatura e da experiência literária para a criança é enorme, até maior do que para o adulto, porque ela está conhecendo o mundo. Então, quanto mais abrirmos esse leque, quanto mais aspectos do mundo ela conhecer, melhor ela vai poder se locomover, agir, atuar”, afirma Graça Paulino, também pesquisadora do Gpell/Ceale. E é no encontro com o texto que essa experiência se constrói. “Acho importante destacar que não basta o texto ser literário. A leitura tem que ser literária. Não é ler para um outro objetivo que nada tenha a ver com arte, com a experiência artística. É ler primeiro para esse movimento estético”, ressalta Graça Paulino.

Pelo acúmulo de experiências literárias diversas, com significados diversos, vai se formando um leitor experiente, conforme explica o professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) João Luís Ceccantini. “Tanto se é experiente em literatura por se ter produzido um número considerável de obras, de textos, num único ou em diversos gêneros, quanto se é experiente por se ter lido um número significativo de obras, por se possuir um repertório de leituras bastante vasto de textos dos mais variados gêneros, épocas, culturas, ‘escolas’, estilos, etc.” 

 

...e aprende com histórias...

A partir da bagagem adquirida por meio de suas experiências literárias, o leitor acaba criando um repertório que reflete na construção de conhecimentos próprios do campo. Graça Paulino cita vários aspectos dos saberes que a literatura envolve, desde o conhecimento das linguagens – uma vez que ‘”a língua é ao mesmo tempo instrumento e objeto” – até o questionamento de uma visão pronta do mundo. “O conhecimento literário leva em conta a transformação constante, leva em conta a história e as diferenças, leva em conta as diversidades e as singularidades”, completa Graça.

A aquisição de conhecimentos literários é o que permite que a leitura e a experiência literária alcancem outros níveis. “Quando a gente é o leitor crítico, a gente pensa no que aquela história está querendo narrar, em como ela é construída, nos artifícios ali propostos, e no que podemos pensar a partir disso para a vida”, reflete Gabriela. E, à medida que constrói um repertório literário variado, o leitor vai se tornando capaz de fazer comparações entre obras e pensar sobre novas leituras a partir de outras narrativas com que já teve contato. “Na escola, é importante trazer o conhecimento e a experiência que os leitores já têm de literatura para dentro da sala de aula. Legitimar essa experiência e esse conhecimento, e favorecer o acesso a uma outra experiência”, reflete Gabriela.

 


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