Quando o leitor encontra a literatura (3)


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 18:05:00

...até chegar a longas e complexas histórias...

Com a consolidação da alfabetização, a leitura de poemas, crônicas e contos breves se intensifica na rotina escolar. Mesmo reconhecendo sua importância, João Luís Ceccantini chama a atenção para o perigo de se limitar o trabalho a esses textos – que são aqueles, brinca o pesquisador, “que o livro didático adora, porque cabem em duas páginas”. Transitar entre esse grupo de textos e outros mais extensos, como novelas ou romances, na adolescência e na juventude, é essencial para desenvolver a formação literária. “No romance, quando você está no meio do livro, tem em mente tudo o que foi visto atrás, o que aconteceu em um capítulo, estabelece relações, hierarquiza valores dentro da obra”, aponta Ceccantini. Partindo desses livros, a escola deve ser o espaço de simulação da circulação social da literatura, criando situações e ambientes para socialização dessa leitura. “O próprio leitor é protagonista dessa circulação: ele vai compartilhar a leitura com seus pares, ora fazendo uma resenha, ora dando um depoimento. É possível criar uma série de atividades para ele contar sobre o livro que leu e por que gostou ou não”, ressalta Ceccantini, que destaca a necessidade de maior trabalho prático com a leitura, que, por ter resultados menos tangíveis em comparação à produção de textos, acaba sendo negligenciada.

Durante um trabalho com uma turma do 1º ano do Ensino Médio, que estava lendo Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, Gabriela Rodella pôde observar os impactos da experiência literária na construção de conhecimentos literários. Os alunos relataram dificuldades com o texto, entre outras razões, pela ausência de capítulos e a pontuação incomum. Mesmo achando a obra complexa, eles gostaram da leitura. “Muitos disseram: ‘esse livro é diferente dos outros que eu já li’”. Uma aluna falou: ‘Ele tem alguma coisa por trás, está querendo dizer alguma coisa para a gente por meio da história que está contando’. Uma outra leitora afirmou: ‘ele está usando metáforas e o importante é você saber o que está por trás e não o que está ali na letra do texto’”. Após observar o debate, a pesquisadora avaliou positivamente seus resultados: “Comentários desse tipo são fruto de uma experiência literária mediada pela escola, pelo professor”, comenta Gabriela. A leitura em grupo, especialmente quando realizada em sala de aula, tem ainda a vantagem de proporcionar a formação de comunidades de leitores. “Os alunos passam a conversar entre si sobre os livros e sobre literatura. Construir uma interpretação em sala de aula, a partir de uma leitura feita em sala de aula, é uma experiência muito potente”, destaca a pesquisadora.

 

...até onde vai essa história?

Por envolver competências e conhecimentos que se complexificam, é importante pensar a formação progressiva do leitor de literatura. “Eu sempre definiria um currículo na área da leitura mais em termos de metodologia, de princípios teóricos, de competências que o estudante deve adquirir”, propõe João Luís Ceccantini, opondo-se ao modelo de ensino de literatura do Ensino Médio segmentado por estilos ou períodos da produção literária. Ele ainda ressalta a necessidade de se atentar para a heterogenidade da turma durante a formação. “Você tem alunos lendo de maneiras muito diferentes: alguns têm fluência de leitura e conseguem ler os chamados livros de capítulos; outros mal conseguem ler aqueles com uma imagem e uma frase embaixo. A sala de aula é muito diversificada”, alerta Ceccantini. Por isso, ele propõe que o currículo de ensino de literatura seja organizado a partir da sensibilização para o universo literário e de competências básicas até chegar às mais sofisticadas, que formam um leitor crítico. “E quem seria esse leitor crítico? É aquele capaz de circular entre os vários gêneros, de se assumir como sujeito, de explorar o texto literário segundo as mais diferentes perspectivas. As competências desse leitor crítico não encontram limites”, define Ceccantini.

Seguramente, a formação literária é contínua. Por isso, afirma Rildo Cosson, é importante que a escola tenha um trabalho de leitura também para adultos. “A formação do leitor literário tem começo, mas não tem fim: nós estamos sempre em um processo de letramento, sempre nos construindo como leitores. A cada novo livro que eu leio, transformo tudo aquilo que já li anteriormente”, destaca Rildo. “Talvez o primeiro passo pra ensinar literatura seja o professor se perguntar: eu sou um leitor de literatura?”

 

>> O que esse livro tem?

O encontro entre um leitor e um livro abre infinitas possibilidades de sentido. O que imaginar quando esse encontro envolve dezenas de leitores em uma sala de aula? Para que o professor possa aproveitar ao máximo a leitura de um livro pela turma, é fundamental estar familiarizado com a obra. “É importante pegar aquela história, levar para casa, ler e fazer um trabalho de percepção: quais as potencialidades daquele texto? O que aquele texto fala para ele? E, depois disso, o professor vai pensar em como preparar a aula”, sugere a professora Maria Elisa Grossi. Além da leitura literária, pesquisas e leituras complementares também podem ajudar na hora de mobilizar os conhecimentos e as habilidades de leitura dos estudantes. “O professor pode pesquisar sobre o autor, quando foi escrito aquele livro, qual a edição... Até mesmo porque, quando o trabalho é feito com os alunos, muita coisa nova pode acontecer, já que cada leitor traz suas experiências. Se o professor estiver preparado, vai aproveitar muito mais esses ganchos”, diz Maria Elisa.

A diversidade de situações que podem surgir do encontro dos alunos com a obra pode variar de leituras pessoais a questões objetivas que o professor nem esperava. “Muitas vezes o professor acha que alguns elementos são óbvios para o aluno – e às vezes não são. Por exemplo, ele pergunta: 'Qual é o título do livro?', o aluno está com o livro na mão, sabe ler, mas não sabe o que é um título”, relata Roberto Cezar, que já vivenciou situação semelhante como professor de Educação de Jovens e Adultos.

A formadora Mirian Chaves Carneiro observa que o momento de exploração do livro também permite que o professor faça sua apreciação subjetiva da obra, compartilhando impressões e emoções despertadas pela leitura. Nesse sentido, Mirian se lembra até hoje das práticas de uma professora que teve no antigo Ginásio [atualmente, os anos finais do Ensino Fundamental]. “Ela dava as impressões dela sobre o autor, sobre o texto, mostrava partes que considerava muito literárias. Eu lembro de lermos O Quinze, de Raquel de Queiroz, e ela falando: ‘fechem os olhos para poder perceber a tristeza do Nordeste’, e lia partes do texto para a gente. O que ela fazia? Ela nos instigava a imaginar.”

 


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