Realizando análises linguísticas

A proposta de tomar a língua como objeto de estudo para entender seu funcionamento em usos reais


     

Letra A • Quarta-feira, 27 de Julho de 2016, 09:51:00

 

Por Vicente Cardoso Júnior

“Nada na língua é por acaso.” Partindo dessa premissa, o sociolinguista Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília (UnB), defende que “todo e qualquer fenômeno linguístico tem uma explicação, e essa explicação pode ser dada por meio de instrumentos teóricos bem elaborados e testados.” Observar e compreender o funcionamento da língua – atividade que pode ser chamada de ‘análise linguística’ – é algo natural para todo falante. Afinal, é preciso compreender a linguagem nas ações de falar, ouvir, ler e escrever. “Desde que somos expostos à língua na mais tenra infância, o processo de aquisição dessa língua envolve análise da parte do nosso sistema cognitivo.” Ao serem propostas análises linguísticas na escola, a finalidade é “trazer essa análise intuitiva à tona, transformar a língua em objeto de estudo e demonstrar, de modo explícito, o seu funcionamento”, afirma Bagno.

O professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Sírio Possenti defende que, no ensino de Língua Portuguesa, “a análise linguística, realizada ora com maior rigor (teórico e metodológico), ora mais intuitivamente, deveria ocorrer em todos os momentos”. A ênfase em determinado aspecto da língua a cada momento é definida de acordo com a proposta de aprendizagem, como exemplifica Possenti. O professor pode definir: “Hoje vamos olhar mais de perto a sintaxe deste texto”, por ele ser mais antigo, por exemplo, e ter uma sintaxe mais rebuscada. Ou, então, a opção pode ser por focalizar o léxico do texto: “se é formal ou informal, se é técnico”. Ou, ainda, em uma atividade de revisão ou reescrita, o objeto linguístico em análise pode ser do campo da ortografia ou de regência verbal.

Na educação básica, o termo ‘análise linguística’ tem sido usado para “designar o que temos lutado por colocar no lugar do ensino da gramática pedagógica tradicional”, afirma o professor Artur Gomes Morais, do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Aquele antigo ensino cobrava do aprendiz decorar nomenclaturas e classificações que nada ou muito pouco ajudavam para ele ser um bom leitor e produtor de textos”, completa. Nessa perspectiva, Artur também defende que a análise estará presente em toda atividade que promova o ensino da língua. Até mesmo a apropriação do sistema de escrita alfabética seria, para Artur, “uma grande tarefa de análise linguística”. “A escrita alfabética não é um código que se aprenderia por mecanismos de associação/repetição, mas um sistema notacional, que exige do aprendiz analisar as letras para entender o que notam e como notam as palavras orais da língua.”

Observar fatos reais

No trabalho de análise linguística nos primeiros anos, Sírio Possenti destaca três dimensões importantes. A primeira seria como forma de revisão das produções textuais dos alunos. “O que caracterizaria esta atividade como análise é que os ‘erros’ seriam explicados, ou seja, relacionados a regras ou a questões estruturais.” A segunda dimensão seria justamente a de explicitar regularidades. “Dizemos ‘os menino’, ‘duas garrafa’, ‘as casa’, ou seja, há uma regra na marcação do plural, que funciona independentemente de gostarmos ou defendermos esta estrutura na escrita ou na fala formal”. Essa concepção de linguagem permite perceber que há regras também na variação e, portanto, razões para o que é considerado “erro”, o que mostra que “todos os dados linguísticos merecem análise, e não só a língua padrão”, finaliza Possenti.

Para observar e compreender as regras (regularidades) do funcionamento da língua, é importante partir “dos usos reais e de textos autênticos”, defende Marcos Bagno, que exemplifica como essa abordagem poderia ajudar a resolver os problemas com o uso da crase, comuns até mesmo entre pessoas bem letradas. “A simples demonstração de que só se emprega ‘à’ diante de palavras do gênero feminino já serviria para evitar 99% dos usos inadequados”, afirma. Em outro exemplo, relacionado ao ensino de pronomes, Bagno mostra que é importante tomar como base aquilo que a criança já domina com clareza: “A professora pode, por exemplo, perguntar a que se refere um ‘ele’ ou ‘ela’ presente num texto. As crianças facilmente vão detectar o referente desse pronome-sujeito, porque ‘ele’ e ‘ela’ são de uso comum e normal.” Avançando na análise, é possível perguntar sobre os referentes de pronomes como ‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’, ‘lhe’, ‘lhes’ e ainda explicar que, na fala normal, ‘ele’ é usado como objeto direto, mas, em gêneros mais formais, é usado ‘o’. “Com isso, é possível montar um quadro realista do emprego dos pronomes pessoais no português brasileiro, em vez de primeiro expor o quadro tradicional dos pronomes para depois analisar seu uso”.

“Vivemos oscilações e casamentos entre a tradição de ensino das classificações e terminologias da gramática tradicional e as tentativas de inovar, realizando o que idealizamos como ‘análise linguística’”, observa Artur Gomes de Morais. Segundo ele, é possível notar, tanto em livros didáticos aprovados pelo PNLD quanto na prática de professores, a tendência de se realizar uma “amálgama” das duas propostas. Se, por um lado, Artur afirma que a corrente mais moderna surge como uma reação às inadequações da anterior, por outro, ele também reconhece a importância do ensino de terminologia da gramática pedagógica tradicional como um “direito de cidadania” – desde que haja espaço para uma análise crítica das próprias definições e classificações. “Antigamente, aprendíamos que os artigos indefinidos serviam para designar seres não especificados, não identificados. Os fatos reais da língua, como a expressão ‘Essa máquina é boa, mas não é uma Brastemp’, mostram a limitação com que aquela gramática descrevia o funcionamento (tão rico) de nossa língua.”

 

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