Resistindo com palavras

A presença da literatura afro-brasileira nos ambientes escolares contribui para o contato das crianças com maior representatividade e diversidade, além de auxiliar no combate ao racismo


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 14:20:00

 
Por Isabella Lino
 
Quando se é criança, ouvir ou ler uma história pode instantaneamente te transformar no protagonista de uma aventura mística, em um super-herói destemido ou em uma princesa empoderada. No entanto, fica mais difícil se imaginar dentro daquela narrativa quando temos personagens que nunca se parecem conosco, não possuem nossa cor de pele, traços ou tipo de cabelo parecidos. A falta de representação substancial nos livros infantis e juvenis foi por muito tempo a realidade das crianças negras. A literatura afro-brasileira vem tentando mudar essa realidade, desconstruindo a ideia de que a literatura brasileira é o conjunto universal das produções do país, já que ela marginaliza e silencia grupos étnicos, e buscando proporcionar a valorização de novas vozes e narrativas. 
 
Os livros de literatura afro-brasileira infantojuvenil emergem no cenário editorial para dar protagonismo ao indivíduo negro e concretizar outras possibilidades de representação para além daquelas que historicamente atribuíram a pessoas negras apenas papéis secundários, pejorativos e subservientes, como os de empregados, malfeitores e bandidos. A presença dessas novas narrativas no ambiente escolar é muito importante para que a criança negra tenha uma referência positiva para a construção do seu futuro e da sua identidade, além de serem cruciais para a conscientização dos demais alunos sobre a diversidade de corpos, realidades e culturas que existem no Brasil. “Não adianta apenas produzir um texto antirracista, mas sobretudo eu tenho que produzir literatura. Então, eu tenho agora uma produção literária fortemente vinculada à realidade negra, que é uma realidade pluriversal, isso é muito importante”, ressalta Fausto Antônio, escritor e professor da Unilab. 
 
As produções de pessoas negras também valorizam a negritude e incentivam a ressignificação do preto como algo positivo. O cabelo crespo, por exemplo, que desde o período colonial vem sendo associado ao oposto do belo, passou a ser retratado nas obras literárias como um símbolo de resistência que carrega consigo singularidade, poder e encanto. A literatura afro-brasileira confronta, assim como desconstrói, a perspectiva racista que por muito tempo foi propagada nos ambientes escolares, além de empoderar as crianças negras e contribuir para o sentimento de representatividade e para a melhora da autoestima. “O meu livro, ‘No Reino da Carapinha’, vai lidar com isso, trazer a carapinha, que são os cabelos negros, como elemento central. Mas o texto não faz nenhuma referência direta à carapinha, ele apresenta esse reino que é o próprio Brasil, o reino onde essa estética prevalece e precisa ser admirada”, afirma Fausto.
 
As obras afro-brasileiras de literatura infantojuvenil exploram, em muitos casos, nos enredos e na construção dos personagens, a própria vivência dos autores e autoras enquanto indivíduos negros no Brasil: a construção da sua identidade, o processo de autoaceitação e empoderamento, assim como a sua trajetória de resistência ao racismo. Além disso, os textos também resgatam a memória e a ancestralidade, bem como a sua relação com o sistema cultural negro-brasileiro – conjunto de práticas, tradições e mecanismos que operam dentro do sistema de um grupo cultural. “Na minha produção, o sistema cultural negro-brasileiro, que naturalmente passa pela compreensão do sistema negro-africano e negro-dispórico, é o que possibilita a construção de personagens com história, problemática e profundidade. Então, as matriarcas negras estão presentes como contadoras de história e como referência do ponto de vista da organização do cotidiano familiar. Os velhos também estão presentes como sábios, como fundantes de todo um processo cultural, como orientadores e guardiões das crianças”, explica Fausto Antônio.
 
Na literatura infantojuvenil de modo geral, ainda hoje, é muito comum a presença de histórias que retratam a África como um só país, onde há apenas um povo, uma língua, uma religião. A literatura afro-brasileira propõe desconstruir essa visão reducionista, que muitas vezes é responsável por impedir que as crianças conheçam de forma mais aprofundada a história de um dos pilares da formação do Brasil e busca apresentá-las ao continente africano como um local que abriga uma grande complexidade cultural, social e econômica. O livro ‘Pescador de Histórias’, de Heloísa Pires Lima, por exemplo, narra a trajetória de um homem que navega pelas águas africanas e que nunca aporta em lugar algum, mas, às vezes, para e pesca histórias, em vez de peixes. As histórias pescadas contam um pouco sobre a cultura, os costumes e as crenças das comunidades e grupos étnicos que existem ou já existiram ao longo das margens dos rios Níger, Orange, Nilo e do Lago Nakuru, nos quatro cantos da África, e das regiões por onde eles passam.
 
Fausto ressalta a importância da mediação docente no trabalho com livros de literatura afro-brasileira. Os elementos da ancestralidade e da filosofia de vida africana presentes nas narrativas infantojuvenis podem, em um primeiro momento, não serem totalmente compreendidos pelas crianças, principalmente levando em consideração que a maior parte dos conhecimentos populares sobre a cultura negra são frutos de uma perspectiva colonial, que em muitos casos não condiz com ou contempla a realidade, sendo necessária a intervenção dos educadores. Também é relevante que os professores levem os alunos a refletir, por meio de perguntas, por exemplo, sobre os conteúdos abordados nas histórias e a mensagem que está sendo transmitida. “Eu não trabalho com essa redução de que criança pode ler qualquer coisa. As crianças precisam receber uma formação e ter um apoio dos mais velhos, para poder ter acesso a uma literatura de alto nível, que é o que eu pretendo produzir sempre”, acrescenta o escritor.
 
Como anda o mercado editorial?
 
A aprovação da Lei 10.639, em 2003, que determina a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana" no currículo das escolas e redes de ensino, representou um marco para a comunidade negra. Isso porque a necessidade de debate nas instituições educacionais sobre a realidade, as tradições e as contribuições da população negra para a formação da identidade brasileira fizeram com que surgisse uma demanda por livros de literatura afro-brasileira. “O mercado atualmente está mais receptivo aos textos de autoria negra, seja brasileira ou de outros países. Com isso vemos surgir novos autores, e uma ampliação da diversidade neste mercado”, ressalta o jornalista, escritor e editor Vagner Amaro.
 
Vagner Amaro é um dos responsáveis pela fundação da Malê, uma editora voltada para a produção e distribuição de obras de autoria negra que luta pela ampliação da diversidade no mercado editorial brasileiro. Segundo ele, a ideia de criação da editora surgiu a partir da reflexão sobre a falta de representação dos autores negros na literatura brasileira. Por causa disso, a Malê prioriza o acolhimento das obras sem que haja uma delimitação ou distinção por temática ou gênero, além de incentivar, por meio do Prêmio Malê, o surgimento de novos autores. “Fazer com que as pessoas negras se pensem como autores já é bastante revolucionário, é um movimento que se contrapõe aos ecos do racismo científico, que ainda desqualificam intelectualmente pessoas negras. No sentido mais prático, o prêmio vem publicando obras de autores e autoras que estão se desenvolvendo como profissionais”, pontua o editor.
 
Para a escritora Heloísa Pires Lima, o mercado editorial encontra-se atualmente mais aberto e receptivo para as produções literárias de autoria negra e para o surgimento de novos polos editoriais, principalmente quando comparado com o cenário de anos anteriores. Porém, o professor Fausto reforça que ainda há muito a ser feito para que se garanta a diversidade no campo literário brasileiro. A Lei 10.639, embora significativa, não é suficiente para proporcionar a ampla divulgação dos livros afro-brasileiros, tendo em vista que ela também permite que as produções de indivíduos brancos adentrem nos ambientes escolares a partir da justificativa de que se enquadram na categoria de textos antirracistas que abordam a cultura negra, podendo retirar, assim, a oportunidade de pessoas negras falarem, por meio da literatura, sobre as suas experiências e perspectivas.