Retextualizar para recontar
O uso da retextualização pode ser um processo rico para trabalhar vários gêneros e habilidades linguísticas
Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 16:21:00
Por Bruno E. Campoi
Seja na escola, no trabalho ou em casa, todos já passamos pela situação de contar para alguém algo que vimos e chamou nossa atenção. Não importa se foi uma notícia surpreendente, o capítulo de ontem da novela ou o mais novo escândalo político, sempre que fazemos isso, estamos realizando a chamada ‘retextualização’. Em termos gerais, ela pode ser definida como “um processo de produção de um texto tendo como base, como referência, um ou mais textos fonte”, explica a professora e doutora em Estudos Linguísticos da PUC Minas Maria Flôr de Maio Benfica.
Mesmo que a expressão “retextualização” não seja muito comum, ela não é recente. O professor e doutor em Linguística da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Dennys Dikson Marcelino da Silva conta que suas primeiras menções a ela surgiram no início dos anos 1990, na tese da pesquisadora Neusa Travaglia, que estudava esse processo no contexto de tradução de uma língua para outra. Na década seguinte, o termo ganhou outra roupagem devido ao estudo de pesquisadores como Luiz Antônio Marcuschi. Para ele, a retextualização acontece quando um gênero textual, nas modalidades oral ou escrita, é transformado em outro texto, da mesma modalidade ou não, mas sempre mantendo o sentido original.
De acordo com Maria Flôr de Maio, a retextualização já acaba sendo trabalhada de alguma forma em muitas situações dentro da sala de aula, mesmo que a professora não se dê conta disso. Ao abordar um conteúdo de Ciências, por exemplo, a professora pode pedir que sejam feitos resumos e esquemas de revisão com aquilo que poderá cair na prova. Nesse caso, a retextualização acontece nessa passagem do conteúdo do livro didático ou da explicação da professora para o esquema ou resumo do aluno.
Apesar da sua aparente simplicidade, Dennys explica, ainda, que a retextualização muitas vezes é confundida com a refacção textual. “Quando a gente vem para a sala de aula na universidade conversar com os alunos sobre retextualização (...), muitos imaginam que retextualizar é eu pegar um texto que tem problemas, que está mal feito, mal redigido, com problemas gramaticais, linguísticos, semânticos ou de sentido, e ajeitá-lo, arrumá-lo, melhorá-lo, ou seja, corrigir”. Entretanto, retextualizar é um processo de adaptação muito mais rico e que envolve diversas habilidades linguísticas.
Tanto Dennys quanto Maria Flôr de Maio são defensores do uso da retextualização como expediente metodológico. Para eles, desde os primeiros anos na escola, já é possível realizar esse tipo de trabalho com os alunos. “Quando as crianças são mais pequenininhas, eu preciso trabalhar com textos menos linguísticos, porque elas não vão conseguir ainda escrever, porque não estão alfabetizadas. Mas a retextualização pode ser feita em qualquer momento”, afirma Dennys.
O professor sugere, também, que a retextualização seja trabalhada em sala, aproveitando os gêneros textuais previstos na grade curricular. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso que os alunos tenham muito domínio do gênero-base e do gênero-fim envolvidos. Em um projeto de extensão da universidade onde atua, por exemplo, depois de meses trabalhando a fábula e a história em quadrinhos com alunos do quarto ano, ele conecta os dois gêneros com a retextualização. “Os alunos estão dentro de dois gêneros diferentes, de semioses diferentes, plurissemióticas de lados distintos, mas como eles vieram o ano todo estudando gêneros, eles vão conseguir ler, interpretar as fábulas e depois passar as fábulas para uma história em quadrinhos numa boa”, afirma.
Elementos a se considerar
Uma retextualização vai além de um simples movimento de deslocamento, já que, para realizá-la, é inevitável incluir elementos que não estavam no texto original, explica Dennys. Para ele, em uma atividade dessas, “o que eu não posso é fugir dos tópicos principais do gênero-base (...) mas adicionar, suprimir, substituir, reordenar..., isso é absolutamente necessário. Não há como retextualizar sem fazer isso”. Essa situação se torna mais clara principalmente quando a retextualização ocorre entre textos de gêneros diferentes. Para que uma fábula seja transformada em uma história em quadrinhos, é impossível não colocar balões de falas ou outros elementos específicos que não fazem parte do texto-fonte.
Para que a retextualização seja realizada, o propósito comunicativo dos textos envolvidos precisa estar muito claro, explica Maria Flor. Dessa forma, se um aluno vai transformar uma palestra assistida em uma notícia de jornal, é necessário saber qual era o seu objetivo e qual será aquele da notícia a ser produzida. Além disso, também é preciso pensar em operações linguísticas, como: “Quanto de informação será dado no novo texto?”; “Qual é a informação mais importante?”; “Como essa informação se desdobra?”; e “Como o texto pode ser concluído?”. Segundo a professora, se não forem estabelecidas as condições de produção desse novo texto, a atividade poderá perder o seu potencial e se transformar em um exercício de escrita de redação que não entrará tão a fundo na estrutura dos gêneros.
Por essa razão é que o conhecimento dos gêneros se torna fundamental. “É preciso que o sujeito-leitor construa uma compreensão do texto-base para, a partir daí, ele então sujeito-autor fazer as suas escolhas tanto em relação ao conjunto de informações que ele precisa trabalhar no novo texto, quanto em relação ao modo de composição do novo gênero”, afirma a professora. Se uma notícia está sendo produzida com base em outro texto, não basta apenas compreendê-lo, mas também é preciso saber como se escreve uma notícia, qual é a sua forma, como vão ser trabalhadas as vozes presentes, incluindo a do próprio autor, como serão colocados os diálogos, etc.
Retextualização em sala de aula
A professora Maria Flôr enumera os principais fatores que devem ser considerados no processo de produção e realização de uma atividade que envolva retextualização. Segundo ela, deve-se considerar para tal:
• O propósito ou objetivo da retextualização (O quadro interlocutivo proposto na tarefa);
• Leitura e compreensão do(s) texto(s)-base (Para dizer de outro modo, em outra modalidade ou outro gênero o que foi lido ou dito por alguém, a compreensão é imprescindível);
• O levantamento de informações/conteúdos do(s) texto(s)-base para compor o texto- final (O produtor, orientado pelo propósito discursivo, planeja a seleção das informações que irão compor o novo texto, mantendo fidelidade às informações do(s) texto(s)-base);
• Identificação das características dos gêneros de textos envolvidos na tarefa (A realização dessa atividade envolve a relação entre gêneros);
• A relação tipológica entre o gênero do texto-fonte e o gênero da retextualização (É o trabalho de análise dos tipos textuais predominantes nos textos envolvidos - tipo narrativo, descritivo, argumentativo, injuntivo, expositivo e dialogal);
• A construção da textualidade de acordo com o gênero proposto para o texto final (É o trabalho linguístico de selecionar o vocabulário mais adequado ao nível de linguagem, os recursos gramaticais a serem utilizados na estruturação das frases e a definição das preposições e conjunção que as interligam, recursos apropriados de coesão para interligar as partes do texto, recursos morfossintáticos. É necessário também cuidar também das convenções da escrita, como a ortografia e a pontuação, etc.);
• Para finalizar, a releitura do texto – final (O processo de textualização – o texto foi composto, considerando as condições de produção – o propósito comunicativo /o objetivo, o destinatário – o planejamento das informações para compor o conteúdo temático e o emprego adequado dos recursos gramaticais, ortografia, pontuação, etc.)