Retrospectiva: Escolas, métodos e professores no Brasil e na França

A edição número 8 do Letra A trouxe uma entrevista de Anne-Marie Chartier, concedida à pesquisadora Marildes Marinho em 2006


     

Letra A • Quarta-feira, 03 de Junho de 2015, 13:20:00

 

Com muitas publicações, na França e no exterior, o foco do trabalho de Anne-Marie Chartier é a história da escolarização da escrita e dos métodos de ensino da leitura na França e Europa Ocidental. Dois livros seus foram publicados no Brasil (confira Saiba Mais) como resultado de seu trabalho contínuo com a formação de pesquisadores brasileiros e sua colaboração com diversos grupos de pesquisa no Brasil, país que já visitou várias vezes. Nesta entrevista, realizada em Paris, por Marildes Marinho, pesquisadora do Ceale e professora da Faculdade de Educação da UFMG, Anne-Marie fala sobre a educação brasileira, métodos de alfabetização, o fracasso escolar, o impacto das novas tecnologias nos modos de ler e escrever e os desafios dos professores diante dessas mudanças. Confira.

O que mais chamou sua atenção no contato com o Brasil e com a escola brasileira?

Antes de ir ao Brasil, eu já tinha lido sobre ele. A proximidade das questões brasileiras e das referências científicas me tocou muito. Senti grande familiaridade no modo como os brasileiros abordavam as questões da alfabetização, da formação das crianças, dos problemas sociais, etc. Mas, quando fui às escolas, me dei conta de que palavras como fracasso escolar, analfabetismo, condições materiais não significavam a mesma coisa no Brasil e na França.

Em relação aos salários, por exemplo, o dos professores do Brasil não tem nada a ver com o dos franceses, que são funcionários públicos da classe média. No Brasil, por razões econômicas, há cerca de 30 anos, o professor passou a ter vá- rias turmas, em mais de um turno. Se um professor dá aulas de manhã e também à tarde, não podemos querer que ele leia e se prepare como um professor responsável por uma única turma.

Também o fato de uma sala de aula receber várias turmas e não apenas uma, durante um mesmo dia, interfere muito do ponto de vista da pedagogia. O aluno não pode deixar suas coisas nos escaninhos, não pode “habitar” o espaço da sala como poderia fazê-lo se ele fosse seu “proprietário”.

Outra coisa que descobri, no Brasil, é que nenhum dos colegas da universidade, que me explicavam o que deveria ser feito para a educação popular, tinha filhos na rede pública. Enfim, a separação entre público e privado muda completamente a percepção do sistema escolar. Na França, os professores são também pais de alunos do ensino público.

O que você pensa da idéia de que os métodos antigos eram melhores e os professores mais capacitados?

Penso que não devemos misturar métodos e professores. Os métodos são uma coisa, a qualificação dos professores é outra. O professor de 1970, no Brasil, com uma única turma de alfabetização, era um especialista melhor do que o dos anos 1980, que passa a ter uma carga de trabalho dupla.

Uma outra coisa são os métodos. Penso que a competência em leitura não se define fora da história. Cada método foi utilizado num contexto particular para ensinar a ler alguma coisa. O método de soletração, do “bê-á-bá”, que durou da antiguidade até o começo do século XIX, usava textos que as crianças aprendiam primeiro de cor – as poesias de Homero, as orações – e, depois, com os textos decorados, praticavam sistematicamente a soletração. De certo modo, quase não havia fracasso, pois quem não aprendia a ler com autonomia tinha, ao menos, memorizado os textos julgados necessários para sua vida social, para ir à missa, para rezar o Pai Nosso com todo mundo, em latim. Logo, era um método adaptado a um certo tipo de leitura.

A partir do século XIX, passou-se a exigir que as crianças lessem textos profanos, de divulgação científica, novelas e romances, ou seja, narrativas na língua materna. Para isso, era preciso outro método de leitura, pois a criança não poderia memorizar todos os textos que deveria ler.

Então, a polêmica dos métodos nasce mais ou menos nessa época. A cada período, os métodos de leitura são ligados aos objetivos culturais da aprendizagem. E, hoje, vivemos uma mutação.

O surgimento e a difusão das tecnologias digitais é parte dessa ‘mutação’ na forma de lidar com a leitura e a escrita. Como o professor pode lidar com essas transformações?

É verdade que estamos vivendo uma mutação, as pessoas a sentem e, ao mesmo tempo, a mitificam. Agora que passamos a usar um modo de escrita que é mais do teclado, da tela, da consulta às bases de dados, da interação entre leitura e escrita, vemos bem que os modos de aprendizagem antes usados para ensinar a ler não são mais suficientes. Eram métodos que separavam completamente a leitura da escrita. Hoje, uma coisa muito interessante e muito complicada de se pensar é a interação permanente leitura/escrita, com as escritas “de teclado”. Isso altera radicalmente a representação que as crianças fazem da utilidade de aprender a ler. As escritas funcionais são infinitamente mais importantes hoje do que eram antes. Vemos bem o problema ao usar um telefone celular: se a pessoa não sabe ler, está morta! Ao passo que, a priori, o telefone surgiu para liberar as pessoas da escrita. Era o que dizia McLuhan: na era da televisão e do telefone, não teremos mais tanta necessidade da leitura e da escrita. Acontece que as telas com imagens e sons são inseparáveis dessas competências do ler e do escrever. Então isso modifica profundamente a relação de um meio muito popular com a leitura e a escrita, mesmo para tarefas de qualificação muito baixa. Podia-se ser uma faxineira sem saber ler nem escrever, sem nenhum problema, mas hoje, para ser faxineira de uma grande rede de hotéis é preciso saber marcar itens numa lista com as operações que se deve fazer num quarto, a pessoa não vai conseguir o emprego sem saber ler.

Mas as antigas finalidades da escola – das disciplinas: história, geografia, literatura, etc – não foram abandonadas. Ao contrário, pensa-se que elas são necessárias para constituir uma identidade, uma cultura comum, uma relação com as gerações anteriores, e a escola e seus professores têm de lidar com o antigo e o novo ao mesmo tempo.

Por que a polêmica em torno do uso ou não do método fônico?

Acho que a questão sobre o método fônico é mais interessante como sintoma do que como realidade de discussão. Pode-se discutir o fracasso escolar tendo em vista resultados objetivos e métodos concretizados nos livros didáticos. Mas é preciso lembrar que os discursos sobre a leitura – mesmo os científicos – nunca ensinaram ninguém a ler. Ora, mesmo assim, muitas crianças, a cada ano, aprendem a ler. Como elas fazem? Se os professores têm métodos tão ruins, o que é preciso explicar não é o fracasso, é o sucesso. As crianças aprendem a ler também graças aos professores e aos livros. Não se pode contentar em dizer que se deve usar um método global ou fônico. O que é preciso é ver em que momento, em que fase da alfabetização, é necessário um certo tipo de metodologia.

Entrevista: Anne-Marie Chartier (parte 2)