Retrospectiva: Nada é mais gratificante do que alfabetizar (3)


     

Letra A • Quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015, 16:55:00

 

Qual a contribuição da lingüística para a alfabetização?

Como eu disse anteriormente, até os anos 80, a lingüística não se voltava para a alfabetização. Embora o método fônico, como também o silábico, o global, tenham, em tese, fundamentos lingüísticos, não eram apresentados com essa fundamentação. Na verdade, eram métodos com base intuitiva, tanto assim que há erros enormes nesses métodos, sob o ponto de vista lingüístico. O que é natural, porque, repito, só muito recentemente é que as ciências lingüísticas tomaram a alfabetização como objeto de estudo. Por exemplo: as cartilhas de método fônico ou método silábico começam sempre com as vogais, consideradas como sendo cinco: "A E I O U", e já aí incorrem em um erro lingüístico. As vogais não são cinco, são mais que o dobro: há vogais abertas, fechadas, nasais – É, Ê, Ó, Ô, I, A, AN, EN, ON, IN, UN... Em uma cartilha recente, para trabalhar com a vogal A, o autor apresenta várias palavras que começam com A, e escolhe avião ao lado de anta: em avião o fonema é /a/, em anta, é /ã/; no primeiro caso, é o A oral, no segundo, é o A nasal. A letra -n-, em anta, apenas serve para nasalisar a vogal, não é um fonema, o fonema é a vogal nasal /ã/, representada por duas letras, A + N. Leva-se a criança a construir a hipótese de que cada letra representa um "som", um fonema, ao mesmo tempo que se quer que ela aprenda as supostas cinco vogais... apresentando-as sempre com apenas o "som" oral... E aí aparece uma palavra com um N, que não representa som, só serve para tornar o A nasal, como em anta, canta, janta. O A de avião e o A de anta não são a mesma vogal, são duas vogais diferentes. Esse exemplo mostra como os aspectos lingüísticos são fundamentais na alfabetização.

Você disse antes que é importante que a criança aprenda a construir sentido para o texto escrito e que isso pode ser alcançado quando se coloca essa criança em contato com diferentes gêneros textuais. A maioria das escolas públicas não tem acesso a uma ampla diversidade de textos. Você acha que um livro didático pode suprir essa falta ?

Acho que o livro didático pode cumprir essa função, sim. Mas é preciso considerar que o livro didático sempre didatiza o real, ele é, inevitavelmente, uma escolarização do real. Uma coisa é você passar por uma avenida e ver e ler um outdoor; outra coisa é ver e ler esse mesmo outdoor na página de um livro didático. Entretanto, se o livro didático apresenta a foto de um outdoor, ele possibilita levar a criança a discutir o gênero publicidade e sua função, com perguntas como: "Por que escolheram essa figura para fazer propaganda de Coca-Cola? por que essa moça bonita de biquíni? o que isso tem a ver com Coca-Cola?" E, para aproveitar esse exemplo para mostrar a possibilidade de integração das várias dimensões da aprendizagem da língua escrita, um outdoor como esse mencionado permitiria tomar a palavra Coca-Cola para trabalhar as relações fonema/grafema; aliás, Coca-Cola é uma palavra ótima para isso, pela correspondência biunívoca entre fonemas e letras, e ainda pela repetição das sílabas... O livro didático pode representar o portador, e pode dar sugestões ao professor para explorar o gênero, o texto, e pode propor atividades com gênero, texto e palavras que nele apareçam. Naturalmente, é importante que também os portadores, textos e gêneros reais estejam presentes na sala de aula - livros, jornais, revistas, cartazes, anúncios...

Isso leva a considerações sobre a afirmação, presente na pergunta, de que a maioria das escolas públicas não tem acesso a uma ampla diversidade de textos. Não concordo inteiramente com isso. A escola pode até não ter uma biblioteca ou ter uma biblioteca precária, e é lamentável que isso ocorra, mas material escrito, nesta sociedade grafocêntrica que é a nossa, é coisa muito fácil de conseguir. É fácil conseguir jornais, revistas, propagandas de supermercado... Uma professora pode, por exemplo, pedir a esses meninos que ficam em sinais de trânsito distribuindo panfletos um monte daqueles papéis, e levar para a sala de aula, perguntar às crianças o que elas acham que está escrito ali, por que e para que aqueles papéis estavam sendo distribuídos... Pode ainda tomar uma ou outra palavra do panfleto para trabalhar o sistema de escrita.

Em cursos para professores nas universidades, os alfabetizadores chegam com a expectativa de encontrar uma "receita"...

Eu acho que os professores têm razão quando querem saber "o que fazer". A nossa posição, na academia, é relativamente confortável, porque desenvolvemos pesquisas e discutimos teorias... Mas o alfabetizador se vê na sala de aula com 30, 40 crianças em sua frente, e tem de fazer com que essas crianças aprendam a ler e a escrever. A etapa da alfabetização é a mais desafiadora do ensino. Porque, quando se é professor de Português, depois que a criança já aprendeu a ler e a escrever, os resultados perseguidos e mesmo os obtidos são mais imprecisos: há alunos que interpretam melhor, outros têm mais dificuldade... Com Geografia, com História, é também assim: uns aprendem mais, outros menos... Já com a alfabetização é diferente, porque, ao final do ano, é preto no branco: a criança está ou não está alfabetizada. Por isso, entre os professores, a alfabetizadora é a mais claramente avaliada: ou alfabetizou ou não alfabetizou. Ela enfrenta a pergunta: "Quantos alfabetizados você já tem na sua sala?" Implicitamente: quantos alunos você já alfabetizou? Ela mesma diz frases como: "Estou chegando ao fim do ano com as crianças quase todas alfabetizadas". Uma fala que jamais se ouve de professor de qualquer outra disciplina.

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