Sócrates, o cão e o gato

Acompanhando dois momentos de leitura compartilhada: um com crianças pequenas e outro com professores universitários


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 16:24:00

Por Natália Vieira                                         

Nove da manhã, no horário combinado, as crianças chegam. Esperando por elas está um moço com seu violão, que as convida a se sentarem nos puffs dispostos especialmente para recebê-las. São 19 crianças de 3 anos de idade da Creche São Geraldo, já prontas para ouvir o que aquele adulto tem a dizer. Trata-se do bibliotecário Diego Dávila, que dá início a mais uma Hora do Conto e da Leitura na Biblioteca Regional do bairro Renascença, em Belo Horizonte (MG). Diego faz questão de conhecer um pouco mais os convidados, perguntando o nome de cada um. Uns respondem, empolgados; a maioria se recusa.

Se ali algumas crianças não revelam seus nomes, em outra roda de leitura os participantes são apresentados por nome, sobrenome e instituição: os professores João Ceccantini (Unesp), Valéria Ferreira (UFVJM) e Raquel Guimarães (PUC Minas) são os leitores convidados para participar dos Diálogos Socráticos, simulação da conhecida técnica de discussão, que fez parte do XI Jogo do Livro e I Seminário Latino-americano: Mediações de leitura literária. Quem media a discussão é o pesquisador do Ceale Rildo Cosson, que começa a atividade lendo em voz alta o trecho inicial do conto escolhido para a atividade: Se nada mais der certo leia Clarice, do escritor angolano José Eduardo Agualusa. De acordo com a técnica do seminário socrático, os leitores já devem chegar para a atividade tendo lido o texto indicado. Rildo começa a leitura com um tom assertivo e termina em um tom sereno, estabelecendo o clima para a continuidade da atividade.

Diego também se preocupa com o clima que irá construir para mediar a leitura com as crianças. Elas chegam agitadas e, para concentrá-las, o mediador dá, então, sentido à presença do violão, cantando a música Como é verde na floresta. De melodia alegre e envolvente, não demora muito para a canção conquistar os pequenos. Diego canta de forma descontraída, como a letra pede, a exemplo da estrofe: “quem será esse? Todo peludo, é tão guloso! Esse é o urso”. Sem que ele peça, as crianças começam a bater palmas e, empolgadas, tentam cantar junto. A música acaba e é perceptível uma maior atenção destinada a Diego. O mediador ainda investe em uma atividade corporal, embalada por uma calma melodia.

Nos Diálogos Socráticos, estabelecido o início da atividade, o mediador faz a pergunta de abertura, como é proposto pela técnica, que dará partida para a discussão dos leitores sobre o conto. Rildo pontua que, em uma aplicação do seminário socrático em sala de aula, essa pergunta é preparada pelo professor a partir de questões que os alunos devem ter elaborado e registrado em um diário de leitura. Então, em um tom convidativo, Rildo lança a questão: “caros, o que é sonhar um peixe, de acordo com o nosso texto?”. O significado de “sonhar um peixe”, metáfora usada pelo autor, conduz assim a discussão entre os três leitores. O mediador respeita e abre espaço para a opinião de cada um, não interferindo no raciocínio deles.

Com as crianças já relaxadas e ambientadas, Diego está prestes a começar a leitura do livro O cão e o gato, escrito por Antônio Torrado e ilustrado por André Létria. Antes, explica para elas que irá mostrar ilustração por ilustração após a leitura de cada página, para que elas observem calmamente os detalhes. Muito novas ainda, as crianças se atêm a aspectos inusitados, como o caso do menino que pergunta a Diego: “que mão é essa?!”, ao ver uma das ilustrações. Também são sensíveis às mudanças de entonação do mediador que, ao explorar a sonoridade da palavra ‘esquisito’, provoca reação no grupo: uma criança repete a palavra com a mesma ênfase, parecendo se deliciar com aquela forma de pronunciar, levando outras a fazerem o mesmo.

Mais preocupados com os significados das palavras, os leitores da discussão socrática divergem, no andamento da atividade, sobre se o conto de Agualusa é ou não militante. Atento à progressão do diálogo, Rildo faz questionamentos pontuais, como “vamos esclarecer, a ironia está onde?” – se referindo ao contraponto levantado por Ceccantini de que, se o texto é militante, também é auto-irônico. As perguntas têm como objetivo estimular a continuidade da reflexão pelos leitores.

Entre as crianças, após acabar a leitura de O cão e o gato, Diego termina a atividade de mediação com o livro O que é, o que é, do autor e ilustrador Guido van Genechten. “O que é, o que é que tem um nariz tão comprido quanto uma cobra?”: lê a primeira charada e começa a lentamente puxar a página para revelar a resposta, dando tempo para as crianças arriscarem. Quando descobrem, elas vão ao delírio, repetindo “Elefante! Elefante!”, ao associarem o desenho do animal à resposta. Antes de voltarem à creche, são convidadas pelo mediador a folhearem os livros e os gibis dispostos em caixas e numa prateleira da biblioteca.

Rildo finaliza a mediação com o terceiro momento proposto pela técnica, lançando a pergunta de encerramento. “Quando é que, se nada mais der certo, a gente vai ter que ler Clarice Lispector?” Uma pergunta que provoca o incerto e que, por isso, estimula os três leitores da mesa a darem interessantes respostas. “Mesmo tudo dando certo, leia várias Clarices, todas as Clarices”, brinca Ceccantini. “Ler Clarice não é uma solução, é o encontro com o problema e com a realidade, um encontro com a escrita que é morte”, reflete Raquel. “Quando a gente sente falta de sentido, de certeza, de segurança, ou seja, para nós modernos, acho que é sempre hora de ler”, acredita Valéria.

 

SAIBA MAIS

- Assista ao vídeo completo dos Diálogos Socráticos, durante o XI Jogo do Livro e I Seminário Latino-americano: www.ceale.fae.ufmg.br/dialogos-socraticos-video

- Literatura na Educação Infantil: acervos, espaços e mediações (MEC, 2015). Para saber mais sobre mediação de leitura na Educação Infantil, o e-book está disponível em: www.ceale.fae.ufmg.br/literatura-na-educacao-infantil-acervos-espacos-e-mediacoes