“Temos que nos preocupar com as condições dadas para a formação de leitores na escola”

Em entrevista ao Letra A 54, o professor Rildo Cosson, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) discute os avanços e os problemas das políticas públicas federais de compra e distribuição de livros e de incentivo à leitura e analisa as propostas do atual governo para a formação literária


     

Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 13:53:00

 
Muito se discute atualmente sobre a formação do leitor literário, mas um dos gargalos da educação brasileira ainda é o acesso a livros e a uma biblioteca de qualidade nas escolas. Por isso, as políticas públicas federais vêm atuando há décadas na questão. Segundo o professor Rildo Cosson, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), uma das maiores referências no Brasil em pesquisa sobre letramento literário, “em termos de política pública, o marco inicial costuma ser localizado na década de 1930, cujo dado mais relevante é a criação em 1937 do Instituto Nacional do Livro (INL).”
 
Atualmente, no entanto, o programa de destaque do Ministério da Educação (MEC) sobre formação literária, “Conta pra Mim”, foca em ensinar as famílias a promover a leitura literária para as crianças. A proposta vem recebendo críticas de pesquisadores da área, pois atribui às famílias uma responsabilidade, para muitos, equivocada. “Esse programa é perverso, porque, ao invés de focar nos problemas que são enormes, reais, concretos, nos quais o governo deveria atuar para resolver, ele simplesmente desloca a questão para a família, que é importante, ninguém nega, mas que não é o centro da questão.”
 
Nesta entrevista ao Letra A, Rildo traz um panorama das políticas públicas federais de compra e distribuição de livros e de incentivo à leitura, discute os avanços e os problemas dessas políticas e analisa as propostas do atual governo para a formação literária.
 
Por Andreza Miranda
 

Quando e por que foi observada a necessidade de se criar políticas públicas federais de incentivo à leitura e de compra e distribuição de livros no ensino brasileiro?

 
Primeiro, temos que ter em mente que a preocupação com o material de leitura nas escolas é antiga, podendo ser rastreada desde os gregos, como se lê na República de Platão. No Brasil, ainda no tempo do Império, um famoso relatório feito por Gonçalves Dias, destinado a fazer uma verificação da situação do ensino nas províncias do Norte, traz, entre outras constatações, justamente a ausência e a precariedade de material didático, de livros nas escolas, então é uma coisa bem antiga. Em termos de política pública, o marco inicial costuma ser localizado na década de 1930, cujo dado mais relevante é a criação em 1937 do Instituto Nacional do Livro (INL). Trata-se da primeira ação federal concreta e muito clara de política de publicação e distribuição de livros, especialmente obras literárias, e criação de bibliotecas públicas. Não podemos nos esquecer de que o INL é criado na ditadura de Getúlio Vargas. Logo, os livros publicados e enviados às bibliotecas passavam pela censura ou precisavam estar alinhados com a política do governo. Depois, na década de 1960, é criado o Serviço Nacional da Biblioteca, com o objetivo de organizar bibliotecas e desenvolvê-las no Brasil. A Comissão de Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED) que distribuía, mas também controlava e censurava rigidamente a circulação das obras, visto que estávamos mais uma vez sob regime ditatorial. Mais adiante, nos anos 1970, vem a Fundação Nacional de Material Escolar (FENAME), que se transformará na Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que, por sua vez, muda para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em 1985. Na década de 1980, também é instituído o Programa Nacional Salas de Leitura (PNSL), que funcionou de 1984 a 1996. Nos anos 1990, há o Pró-Leitura, uma iniciativa que contou com o apoio do governo francês, e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), que teve o suporte da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e do Ministério da Cultura (MINC), além do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Essa lista não é exaustiva, há outros programas, projetos e campanhas que, antes do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em 2006, já se preocupavam em nível federal com a leitura no Brasil, sejam vinculados à cultura de uma forma mais ampla, sejam direcionados ao ensino de uma forma mais restrita.
 
Todas essas ações de políticas públicas foram criadas porque sempre se teve uma percepção muito clara de que a leitura era uma prática cultural importante e o acesso ao texto impresso, no Brasil, era muito limitado e que esse acesso era fundamental à formação escolar, para ficar apenas com o essencial da questão. Os diagnósticos sobre essa dificuldade de acesso são diversos: o livro é um produto caro e os salários são baixos, as livrarias e as bibliotecas são escassas, a leitura não faz parte dos hábitos culturais da população, uma parte considerável da população é analfabeta ou funcionalmente analfabeta e daí por diante. Há até mesmo a anedota, sempre lembrada nas discussões sobre o tema, de que a cidade de Buenos Aires teria mais livrarias do que no Brasil inteiro. A partir desses diagnósticos são buscadas soluções que vão da isenção de impostos para os livros até os muitos programas de combate ao analfabetismo, constituindo, grosso modo, os programas e as políticas públicas de incentivo à leitura e de compra e distribuição de livros.  
 
É importante compreender que tanto os diagnósticos quanto os projetos, os programas, as campanhas e as políticas públicas que lhes são correlatos respondem a interesses diversos que não se restringem à leitura, nem à formação do leitor, nem ao livro como objeto cultural. Daí a censura, os controles e os processos de seleção, a filtragem das obras de acordo com os interesses da época em que os programas são criados. Em síntese, a justificativa oficial para a necessidade da política pública vem de um diagnóstico em geral bem fundamentado ou pelo menos consensualmente aceito, mas é o interesse específico daquele governo que vai direcionar e estabelecer o funcionamento dos programas de compra e distribuição de livros.
 

Quais as perspectivas que essas políticas trouxeram para o cenário da leitura e da distribuição de livros no ensino público brasileiro?

 
De um modo geral, considero que todas elas são positivas em algum grau, todas elas ajudaram de alguma maneira. Sou otimista, como Poliana. Mesmo aquelas que tiveram menor impacto serviram para sinalizar que havia uma questão a ser pensada, que a leitura era uma questão que precisava ser analisada, precisava ser resolvida em termos de ação governamental e atuação do estado. Assim, independentemente da dimensão da política ou do seu sucesso, elas são positivas porque desvelam o problema, mostram a necessidade de se discutir, de se buscarem soluções para o problema. Agora, se você analisar uma por uma, vai perceber que algumas são baseadas em princípios restritos e, em última instância, contrários à formação do leitor, como a censura e a doutrinação, enquanto outras são mais bem-sucedidas e melhor fundamentadas em termos de leitura da realidade, têm uma ação mais ampla, compreendem a leitura como uma questão maior que vai além da escola para ser uma questão de cidadania. Então, você vai ter diversas interpretações do que é a leitura, do valor do livro e de formação do leitor, mas, de um modo geral, todas elas contribuem, ainda que minimamente, para que a leitura seja considerada um direito da população, e até por isso é nosso dever, como professores da área, de criticá-las para que sejam melhoradas e não haja desperdício de recursos, que são escassos. 
 

O Brasil enfrenta muitas questões em relação ao desenvolvimento da leitura e à formação literária dos alunos. Na sua opinião, essas políticas compreenderam e atenderam essas questões?

 
Parcialmente, sempre parcialmente, e, em alguns casos, muito parcialmente. Em geral, como mostram os artigos, os livros, as dissertações e as teses dedicadas ao tema – hoje já temos um número considerável de estudos sobre as políticas públicas de promoção da leitura – essas políticas sempre foram parciais, ou seja, elas nunca compreenderam a formação de leitor literário em todos os seus aspectos; elas sempre enfocaram alguns aspectos que julgavam mais importantes, e normalmente o aspecto mais importante dessas políticas é o acesso ao livro. Quer dizer, essas políticas são sempre mais políticas de acesso, de facilitar o acesso, de dar o acesso ao livro, do que de formação do leitor literário. Então, nós temos políticas públicas de acesso ao livro, às vezes temos políticas de promoção da leitura, mas dificilmente temos políticas de formação do leitor literário.
 
A formação do leitor literário abrange mais do que simplesmente dar acesso ao livro e fazer a promoção da leitura em atividades de mediação; ela também tem um caráter pedagógico, que é próprio do ensino. Por isso, ela precisa englobar, por exemplo, a atuação do professor, que é o formador principal, a existência de bibliotecas nas escolas ao lado de ações sistemáticas e sistematizadas em programas dentro e fora das escolas, que permitem o acompanhamento e a avaliação do processo e de seus resultados. Usualmente, as nossas políticas públicas se restringem ao acesso, ou seja, ficam só no primeiro momento, no máximo, se chega ao segundo com atividades de animação da leitura, mas esse segundo é sempre mais precário, porque é mais difícil e raramente consegue fazer uma boa articulação com o ensino regular.
 

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