“Temos que nos preocupar com as condições dadas para a formação de leitores na escola” | parte 2
Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 15:05:00
O PNBE foi, por muitos anos, o principal programa de promoção de leitura, compra e distribuição de livros do governo brasileiro, porém recentemente foi extinto. Qual é a sua avaliação do trabalho feito pelo PNBE?
O PNBE, é bom que fique bem claro, com todos os seus méritos, era uma política de acesso e distribuição de livros, não era uma política de formação de leitor, ou seja, tal como outros que o antecederam, ele visava, basicamente, entregar o livro para o aluno, fazer o livro chegar até o leitor, disponibilizar os livros para a leitura. Nós que trabalhamos no PNBE tínhamos plena consciência dessa limitação. A professora Aparecida Paiva, que coordenou o PNBE no Ceale, apresentou inúmeras vezes, em seus relatórios e reuniões com as equipes do MEC, propostas para fazer o programa avançar em direção a uma política de formação do leitor, em todas as suas etapas. As respostas sempre ficaram para um depois que nunca veio.
Enquanto programa de distribuição de livros, o PNBE tinha algumas limitações. Por exemplo, ele era muito preocupado com a distribuição de lotes de livro, de acervos fechados, ou seja, o professor que ia trabalhar com a obra não podia opinar sobre a obra, recebia simplesmente um pacote fechado. Também a quantidade de obras destinadas às escolas era pequena e, muitas vezes, não atendia às atividades que o professor pretendia fazer com as obras, porque eram poucas obras por lote, supondo obviamente a existência de um acervo maior e de uma biblioteca que não é a realidade da maioria das escolas públicas brasileiras. O enfoque, portanto, era mais na leitura individual e extensiva do que propriamente na leitura coletiva e intensiva da sala de aula. Além do mais, os livros que chegavam às escolas, muitas vezes, ficavam guardados nas caixas*, como várias vezes foi verificado, ou seja, ficavam guardados na sala da diretora, pois não havia uma biblioteca, não havia um espaço para os livros serem guardados e serem usados na escola. Havia, ainda, o receio despropositado por parte de professores e diretores de que os livros fossem danificados pelos alunos, logo deveriam ficar fora do alcance deles ou ter um acesso rigidamente controlado, entre outras questões mais amplas.
Ao lado de suas limitações, o PNBE trazia vários aspectos bastante positivos. Um deles é que o programa se preocupava em constituir um acervo na escola. Esse acervo era constantemente atualizado, quer dizer, a cada dois anos, a escola recebia um acervo de textos atuais, ou de textos que estavam sendo produzidos naquele momento. Outro aspecto positivo do PNBE é que os livros eram iguais aos das livrarias, então se apagava uma diferença muito importante, que é a do suporte, porque, em outros programas de distribuição de livros, havia um barateamento dos livros que eram feitos sem qualidade gráfica. Os livros comprados pelo governo possuíam uma impressão que destruía o suporte, ou que apagava todas as marcas de suporte, sobretudo livros voltados para as crianças, onde as imagens são essenciais, onde a questão da cor e da ilustração é fundamental para a leitura. Tudo isso era apagado, e o livro chegava à escola chapado, sem despertar nenhum interesse na criança para a leitura. O PNBE, ao contrário desses programas anteriores, preservava o suporte e isso é muito importante quando se fala de formação do leitor. Igualmente positivo era o cuidado com a qualidade das obras que passavam por um processo rigoroso de seleção. Assim, eram obras que possuíam qualidade literária, eram obras que o professor podia usar com tranquilidade. Não esqueçamos que o universo de publicações que temos no Brasil é enorme em termos de títulos lançados anualmente. Se um professor tiver que, individualmente, escolher um livro para seus alunos, naturalmente ficará perdido entre tantas possibilidades, até porque as referências sobre o que vale a pena e não vale a pena ler se encontram mais difusas do que no passado, dados os vários e novos critérios de valoração das obras. Dessa forma, o PNBE oferecia ao professor um horizonte positivamente delimitado para que ele pudesse trabalhar com aqueles livros, sabendo que eram obras que, de alguma maneira, poderiam contribuir para a formação do leitor literário, que aqueles livros seriam adequados para seus alunos. Além de dar essa referência para os professores, o programa permitia que os próprios alunos - uma vez que os livros eram disponibilizados na biblioteca da escola – escolhessem livremente os livros, ou seja, independentemente de serem trabalhados em sala de aula pelo professor. Outro aspecto positivo também importante era a atualização do repertório de leitura do professor, isto é, o acervo do PNBE chamava a atenção do professor para a produção literária contemporânea, que não era só do Brasil, mas de outros países também em um efeito de alargamento do horizonte de leitura tanto docente como discente que não pode ser desprezado. O programa não discriminava os livros por serem brasileiros ou não-brasileiros, a nacionalidade não era um critério de seleção, então havia textos traduzidos de diversos países, de forma que a atualização era de como estava a literatura de um modo geral, qual era a produção de qualidade de praticamente do mundo, e isso é uma coisa muito importante para a formação literária.
O PNBE era, assim, uma política de acesso aos livros, um primeiro passo em um percurso de formação que podia ser construída e trabalhada em programas complementares, seja programa de leitura dentro da escola ou programas mais sistêmicos. As secretarias de educação estaduais e municipais, por exemplo, poderiam se valer desses livros para construir e ampliar acervos, realizar ações de mediação e formação continuada docente. Por exemplo, você tem o programa de leitura do Ceará, lá de Sobral, que é famoso, tem se destacado. Se você olhar para os livros que são usados, são livros que são muito simples do ponto de vista de elaboração, quer dizer, tendo um programa como o PNBE, ele poderia usar esses livros e assim alcançar resultados ainda melhores.
Na sua opinião, quais as necessidades que foram observadas para a criação do PNLD Literário, substituindo o PNBE? O que o PNLD traz de diferente do PNBE?
Sou suspeito para falar deste novo programa porque trabalhei no PNBE pela maior parte da existência dele e penso que sua substituição pelo PNLD Literário foi uma grande perda, um grande equívoco em várias frentes. O primeiro equívoco e mais comprometedor é justamente não compreender que o PNBE era um programa que não tinha um viés didático. O que se selecionava era a obra literária. No PNLD, como diz o próprio nome do programa, a preocupação é com o livro didático, então já se rebaixa a obra literária ao utilitarismo, já se coloca de saída uma camisa de força na literatura. Trata-se de um retrocesso de décadas no tratamento do texto literário na escola, a volta do didatismo que fazia da leitura da obra pretexto para fazer análise sintática, para classificação de palavras, para ensinar os bons modos entre tantas outras coisas que deixam de fora a formação do leitor literário. Segundo esse critério, as obras vão ser selecionadas não porque elas sejam literárias, mas porque elas podem ser boas ou não para serem ensinadas. É uma troca muito ruim porque nega à leitura das obras literárias justamente aquilo que as fazem ser literárias. Outro equívoco é o critério de distribuição dos livros. Se antes eram poucas obras, agora são muitos exemplares de um mesmo título, o que é ainda mais nocivo. O que se vai fazer com essa enorme quantidade de exemplares do mesmo livro? Após usar aquele livro em um ano ou no seguinte, o professor precisa trabalhar para outros títulos, até porque a formação do leitor requer pluralidade e diferentes níveis de complexidade. O resultado é que esses livros vão ficar ocupando as estantes, fazendo companhia aos livros didáticos de anos anteriores, fazendo da biblioteca escolar um legítimo depósito de livros. Aparentemente, o PNLD Literário é fruto de uma improvisação. Eliminou-se o PNBE e, por conta das críticas e resistências ao ato, inclui-se no PNLD a compra de obras literárias de forma atabalhoada, misturando critérios, ampliando problemas e criando novos. Nesse sentido, mais que um equívoco, o PNLD Literário é uma degradação do PNBE. Esse programa tomou aquilo que o PNBE tinha de bom para diminuir e rebaixar; os problemas que o PNBE apresentava o programa atual não resolveu ou tentou resolver de forma desastrosa, portanto, fazendo ficar pior ainda.
O MEC tem um novo programa, que incentiva a literacia familiar, chamado Conta pra Mim. Qual é a sua avaliação desse programa e quais os impactos que ele pode trazer para as crianças brasileiras?
Trata-se de outro desastre em vários aspectos, como a precariedade editorial das obras e o cerceamento temático, mas vou tratar daquele que lhe é central. O programa pega uma constatação, um dado, que é real, que é comprovado cientificamente, e faz uma leitura tão pobre desse dado, uma leitura tão ruim desse dado, para sustentar uma política sem qualquer qualidade educacional. O dado concreto é: as crianças que têm acesso aos textos em casa, que têm amplo acesso à escrita, naturalmente vão ter mais facilidade para aprender a ler e escrever quando vão para a escola. Se a escrita faz parte da vida delas de maneira mais próxima, mais intensa, desde o momento em que ela nasce e convive com a família, antes de ir para a escola, quando ela chegar à escola já estará familiarizada com os textos, com a escrita. A escrita não vai ser uma coisa diferente, então o aprendizado da escrita vai ser muito fácil para ela. Isso é verdadeiro, isso é real, isso é comprovado por várias pesquisas. A leitura pobre desse dado consiste em transformá-lo em um programa de letramento com ênfase equivocada e desconectado da realidade das famílias e da realidade educacional brasileira. Porque, a despeito da troca do nome, trata-se de uma ação baseada na concepção de letramento. Aliás, quando Magda Soares nos ensinou a distinção entre letramento e alfabetização, era exatamente isso que ela falava, o alfabetizar letrando é isso, ou seja, fazer as crianças aprenderem a ler e a escrever dentro dos contextos de uso da escrita, contextos que já vêm de antes de ela entrar na escola e que continuam para além da escola. Isso é alfabetizar letrando; o letrar significa esses usos, a criança tem acesso pleno a esses usos da escrita, que são os usos sociais da escrita, dentro da família e em vários outros ambientes, além do escolar. A concepção teórica está correta, mas o que o programa faz é usar essa concepção para gerar um programa de transferência da responsabilidade de ensinar a ler e a escrever para a família.
Numa visão extremamente generosa, pode-se dizer que o “Conta pra Mim” é uma visão de classe média aplicada ao conjunto da população brasileira. Imagino que, quando o programa foi montado, se baseou em uma versão Disney da família brasileira. Não é sem razão que o material do programa é enfeitado pela figura de um ursinho, esse animal “muito típico” de nossa fauna e que é facilmente reconhecido pelas crianças, e supõe que a criança tem um quarto todo dela/dele, decorado em tons pastel, com uma enorme poltrona ao lado de sua cama, um abajur lilás, onde seu pai ou sua mãe lê para acalentar o seu sono, ou a própria criança aconchegada no colo de um dos pais se inicia na leitura. Não é uma imagem maravilhosa? É uma imagem perfeita do que acontece normalmente em todas as casas brasileiras. Esse é o padrão da casa brasileira; em todas as casas brasileiras as crianças têm um quarto próprio, têm uma poltrona de espaldar alto para a mamãe ler do lado com um belo abajur. É óbvio que isso é uma idealização. A realidade das casas brasileiras, das famílias brasileiras, sobretudo aquelas a quem o programa parece ser dirigido, é muito diferente. É a mãe e o pai que trabalham o dia inteiro, que, quando chegam em casa, estão cansados, a criança está assistindo à televisão, tem o jantar a ser preparado, a verificação da lição dos mais velhos e uma série de tarefas que preparam para o dia seguinte, agora acrescidas de mais uma obrigação. Não basta levar a criança ao banheiro e orientar a escovação dos dentes antes de dormir, precisa também ler uma história porque esse é o seu dever de pai, ele tem que cumprir isso, ou seja, ao invés de ser uma atividade de prazer, passa a ser uma atividade de obrigação. Imagine um pai que, com nossas facilidades de transporte público, chega em casa do trabalho às nove horas da noite, a criança pequena já está quase dormindo, aí o tempo que ele podia ter de interação com o filho, para conversar, vai ter que criar essa preocupação de ler para a criança, sem contar um detalhe significante: essas pessoas, muitos dos pais, não são leitoras, elas não têm essa formação. E tem mais: o pai precisa ler o livro de forma que a criança se interesse, por exemplo, precisa ler com entonação e cadência, observando pausas, distinção entre narrador e personagens, entre outros elementos. Ou seja, não simplesmente pegar o livro e ler mecanicamente, é preciso preparar a leitura para surtir o efeito desejado. A pergunta que não quer calar é: o programa dá conta de preparar esse pai?
*Ler mais sobre o assunto no livro Literatura fora da caixa: o PNBE na escola – Distribuição, circulação e leitura (Editora Unesp).