“Temos que nos preocupar com as condições dadas para a formação de leitores na escola” | parte 3
Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 15:12:00
Isso quando os pais não são analfabetos, não é?
Exatamente, quando não são analfabetos, ou mesmo que saibam ler, que não têm familiaridade com a leitura. O programa é uma idealização, não tem nada a ver com a realidade do Brasil, é um desperdício de dinheiro público. O TCU, que fez a auditoria do PNBE, deveria fazer a auditoria desse programa também. Seria muito bom, até para mostrar o resultado desse desperdício de dinheiro público. Quando se olha o programa com mais vagar, percebe-se que ele sugere, entre outras coisas, que os pais conversem com as crianças, brinquem com as crianças, ou seja, é um programa que, no seu limite, está ensinando os pais a serem pais, que pretende ensinar os pais a serem pais, a dizer para os pais como é que eles devem ser pais. Será que é papel do governo dizer para mim como é que eu devo criar meu filho? Como eu devo interagir com o meu filho? Ou seja, tem um pressuposto muito ruim por detrás do programa de direcionamento, de dirigismo das relações pessoais e íntimas, que é próprio de regimes autoritários. Dessa forma, em lugar de importar dos Estados Unidos a prática do “bedtime story”, por que não incentivar a roda de leitura, que é muito mais próxima da nossa tradição de contação de histórias? Por que não incentivar que as crianças participem da vida familiar integralmente com os adultos, conversando e contando histórias e assistindo à televisão? Por que não incentivar, por exemplo (eu estou agora na Universidade Federal da Paraíba), o uso do cordel com as crianças? Que as crianças falem, cantem e leiam o cordel? Por que não incentivar o uso das expressões, cantar e ler os causos, para a criança poder recontar e interagir com os adultos, por que não sinalizar para as famílias que o que elas precisam é da interação, mostrar que o livro faz parte da vida, ou que o livro é importante, o texto escrito é importante? E tem mais uma coisa: esse programa ignora totalmente o mundo digital; por que não se sugere usar o celular? Por que não usar o computador? Quer dizer, tem uma série de questões culturais, sociais, que o programa simplesmente ignora porque o programa não foi feito para um brasileiro, não foi levada em consideração a família brasileira, não foi feito para o Brasil. É um programa idealizado, feito para o americano da metade do século passado, porque também hoje a realidade das famílias norte-americanas não cabe nesse modelo idealizado.
Para finalizar, eu gostaria que você me dissesse como o envolvimento da família com a leitura das crianças é abordado em programas anteriores. A discussão sobre isso foi trazida pelo Conta pra Mim ou já ocorreu em programas anteriores?
Na verdade, essa questão do envolvimento da família não é nova, exatamente. Porque desde que se começou a discutir a perspectiva de letramento, que se sabe muito bem que, quando a família não participa, o processo de escolarização da criança é mais difícil. Houve, inclusive, há algum tempo, que de repente - sobretudo as professoras de alfabetização - começaram a dizer "meu aluno não aprende porque o pai não ajuda, ou a mãe não ajuda", "a família não ajuda", virou um lema. Então se justificava o fracasso da alfabetização na escola dizendo que era a família que não ajudava. "Se a criança não aprende é porque a família não ajuda, porque sem a ajuda dos pais é impossível alfabetizar", então, quer dizer, essa ideia é antiga, ela é anterior a esse programa. Os programas anteriores eram, em sua maioria, programas de acesso ao livro, a família era convocada a participar de um modo geral, mas não em termos tão específicos. O foco desses programas era dirigido ao leitor, que está correto, o foco tem que ser o leitor, a família é importante, mas ela é coadjuvante nessa história. Quem tem que ensinar a ler e a escrever é a escola, esse é o papel da escola, é para isso que ela foi socialmente instituída. A família podendo contribuir é maravilhoso. Quando família e escola trabalham juntas, quando caminham na mesma direção, as chances de se obter sucesso na formação do leitor são muito maiores, sem dúvida alguma. Todavia, o fato de a família não poder ou ter dificuldade em contribuir não quer dizer que vai necessariamente redundar em insucesso. É a escola que existe para dar acesso à escrita, não a família. Então não faz sentido se atribuir à família esse papel, eliminar o papel da escola. É certo que, se a criança tem um ambiente de leitura, de valorização dos livros, de valorização das atividades de escritas e de leitura, ela vai ter mais facilidade quando for para a escola.
Agora, como se deve promover essa interação é uma questão que precisa ser pensada melhor. Nos outros programas, não se atribuía para a família essa preocupação porque se partia sempre da ideia de que o aluno é que era o alvo, ou a escola é que era o alvo, até porque nossas escolas são muito carentes. Quantas de nossas escolas têm bibliotecas? Quantas de nossas escolas têm bibliotecas e possuem um acervo de obras literárias? Quantas de nossas escolas têm bibliotecas, um acervo de obras literárias e este é atualizado? Quantas que têm bibliotecas, um acervo de obras literárias atualizado, têm um bibliotecário ou uma pessoa que entende de biblioteca trabalhando nessa biblioteca? Porque normalmente o que se tem lá é um professor que está com problema de saúde, um professor realocado, que teve um problema de saúde, não consegue mais ensinar e aí é transferido para a biblioteca. Ele está doente, normalmente “burnout”, mas o seu destino é a biblioteca. Com todo o respeito pelo professor, que a gente tem sempre, e tem que ter sempre, porque o professor é a alma da escola, do trabalho de educação, sem ele nada acontece, quando se coloca uma pessoa que está doente para fazer um trabalho para o qual ela não foi preparada, ela vai fazer o quê? Assim, quando se verifica essas e outras questões da formação do leitor na escola, percebe-se como esse programa é perverso, porque, ao invés de focar nos problemas que são enormes, reais, concretos, nos quais o governo deveria atuar para resolver, ele simplesmente desloca a questão para a família, que é importante, ninguém nega, mas que não é o centro da questão.
É revoltante, não é?
Exatamente, porque se desperdiça o dinheiro público, que já é pouco, tratando de aspectos complementares quando o essencial é deixado de lado. É mais ou menos como a frase atribuída à Maria Antonieta de que, se não tem pão, que se comam brioches, por favor. Nós temos problemas mais urgentes e fundamentais: as escolas não possuem bibliotecas que mereçam essa designação, nem profissionais para atuar nelas; a formação dos professores não atende satisfatoriamente às necessidades de sua atuação profissional e não há ações sistemáticas de formação continuada; o salário dos professores é muito baixo em relação a outras profissões, o que os leva a trabalhar em várias escolas ou em outras funções; muitas escolas ainda funcionam em edificações improvisadas e sem os recursos materiais destinados ao ensino. Temos que nos preocupar em resolver essas questões urgentes. Se o governo se preocupasse em fazer uma escola de qualidade, resolvendo ou pelo menos minimizando esses problemas urgentes, isso, naturalmente, iria reverberar para as famílias e para a sociedade como um todo, e aí, sim, as famílias poderiam ter alguma coisa próxima desse comportamento idealizado que eles querem que elas tenham. Neste momento de nossa história, temos que nos preocupar com a educação, temos que nos preocupar com a escola que oferecemos para nossos filhos. Temos que nos preocupar com as condições dadas para a formação de leitores na escola. Essa deveria ser a primeira e maior preocupação de uma política pública de leitura.