Traduções literárias de obras infantis

Os livros infantis traduzidos de outras línguas são parte importante do currículo escolar e conhecer o processo de tradução auxilia o trabalho com a literatura em sala de aula


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:28:00

por Pedro Eufrosino

O que um parnasiano e um pré-modernista têm em comum? A resposta para essa pergunta está em mais de uma língua. Olavo Bilac, poeta parnasiano, e Monteiro Lobato, o pai do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, foram os primeiros tradutores de obras infantojuvenis do Brasil. A tradução literária exige refinamento, além de uma capacidade de ler, compreender e transcrever sem que o original se perca. Contudo, é necessário que o tradutor possa interpretar e reinterpretar o texto, com suas particularidades culturais e linguísticas, para depois apresentá-lo ao público.

Desde o final do século XIX, o Brasil tem tradutores literários e, atualmente, contamos com um mercado relativamente intenso. Em 2008, o número de obras traduzidas foi de 12% da quantidade total de livros publicados no Brasil (6.226 títulos de um total de 51.129). Mas o que é tradução literária e qual sua importância para a educação?

Tradução, transcrição ou transposição?

Existem muitas noções a respeito do termo tradução. Desde a antiguidade, os gregos criaram várias concepções sobre o campo. Temos noções mais ampliadas, que englobam, por exemplo, a transformação de um livro em um filme, o que podemos chamar de tradução intersemiótica. Uma paráfrase também pode ser compreendida como tradução, um tensionamento dentro da mesma língua, como, por exemplo, a divulgação de uma pesquisa científica em termos que possam atingir um público leigo. Uma outra tradução é a dos livros infantis, em que restringimos o objeto e também a sua faixa etária, atendendo, assim, a um certo público por meio de uma materialidade específica.

Gabriela Ubrig é editora da Companhia das Letrinhas, parte de um grupo maior, a Companhia das Letras. Segundo a editora, a tradução literária é uma arte, pois, para além de tornar acessível o texto, há sempre uma preocupação constante quando se está traduzindo, seja para manter o ritmo, a cadência, ou as características da própria narrativa e da língua original, ou mesmo na presença de objetos que compõem a história. “É algo que vai além da técnica; é preciso compreender e pensar nos significados da história, as intenções do autor e do texto; não é uma transposição simples e direta só com os significados das palavras”, ressalta.

Quando falamos em tradução da literatura infantil, nós estamos dizendo sobre uma tradução interlinguística, intersemiótica e intercultural, destaca Lia Araújo, professora adjunta de língua e literatura francesa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora de tradução de literatura infantil no Brasil. De acordo com a pesquisadora, as formas como a tradução será realizada depende de diversos fatores, como o estatuto do autor (conhecido ou desconhecido), a língua de origem (central ou periférica), a quantidade de pessoas que utilizam essa língua, as suas projeções geopolíticas, o momento histórico em que será traduzido, dentre outros.

Então, em alguns momentos, existem tendências, como se fossem comportamentos recorrentes ou esperados, que chamamos de norma, não no sentido de regra, mas sim daquilo que é normal ou que é esperado. Lia aponta que, por vezes, “a tendência vai ser trazer para perto do receptor algumas particularidades. Por exemplo, se aparece um prato de bacon com ovos no café da manhã, algumas traduções vão apresentar um pão com manteiga e café. Contudo, esse modelo [aparece] cada vez menos, mas tem suas motivações históricas, sociais e políticas”. Atualmente, é possível visualizar o esforço que os tradutores e as tradutoras realizam para manter as características originais das culturas, o que contribui para o contato das crianças com a diversidade sociocultural.

De acordo com Gabriela Ubrig, as histórias de literatura infantil e infantojuvenil tratam de temas universais intrínsecos à humanidade. “É importante a gente ver os temas que aparecem e reverberam em outras culturas e trazer outras formas de visões culturais comuns ao ser humano; além, é claro, de trazer também as especificidades de cada país, de cada grupo cultural, de cada povo”, completa.

A prática e a coautoria

Geralmente, olha-se para a literatura infantil como aquela que precisa de uma linguagem mais limpa, uma linguagem mais delicada, em que a presença de metáforas e de figuras de linguagem não seriam cruciais. Luís Carlos Girão, tradutor e pesquisador de tradução literária com ênfase em literatura infantil e literatura coreana, aponta que isso é um grande equívoco. Segundo Luís Carlos, “antes mesmo de começar a traduzir os textos, é indispensável que eu busque metáforas e imagens, pois, para mim e para quem vai traduzir, é muito importante buscar aquela imagem do original, algo que possa ter mais de um significado”.

Com relação às palavras, o tradutor afirma que é preciso pensar no jogo sonoro, no jogo imagético que essa palavra pode trazer para as crianças, de modo que há diferenças significativas entre as traduções infantis e as demais. “A literatura infantil é mais ‘burilante’, comparada às outras. Não é uma prosa corrida, que tem uma construção de frases longas. Então é muito importante prestar atenção na sonoridade, na plasticidade da palavra, e no ritmo. Traduzir para esse público, além de pedir ao tradutor uma sensibilidade, é necessário prestar atenção nessas outras coisas, para além da tradução apenas da língua”, destaca Luís Carlos.

Além das especificidades da tradução, há um ponto singular nessa prática: a coautoria. Um texto original e um texto traduzido nunca serão a mesma coisa: há desvios, fissuras, escolhas e características individuais do tradutor ao ter contato com a obra original. Gabriela Ubrig reforça que, ao final da tradução, há dois textos, o original e o traduzido: “é um trabalho de autoria e coautoria do tradutor, principalmente quando são obras poéticas, e poesias, porque o tradutor ou a tradutora precisa se preocupar com a rima, não só com a palavra da língua original”. Em consonância com Gabriela, Luís Carlos Girão aponta que o tradutor também é o criador da obra. “São os tradutores quem escolhem as palavras, o que manter e o que modificar da obra, há um papel de autoria mesmo”, reforça.

Olhar para dentro

É inegável a potência da tradução literária. As portas e os mundos disponibilizados às crianças pelas obras representam ampliação de repertórios culturais. Entretanto, é importante pensarmos quais tipos de livros circulam na literatura infantil aqui no Brasil: quais títulos nacionais trazem a cultura popular nacional? Quantos títulos são aprovados pelos programas nacionais do livro de literatura e outros, como as obras informativas e didáticas,  quando são descontinuados? Quantos títulos são trazidos para dentro do currículo escolar e carregam mitos, figuras míticas, figuras de construção do imaginário nacional e que fundam a cultura brasileira? O quanto isso circula?

Lia Araújo destaca que seria interessante pensar no trabalho com a literatura infantil no âmbito educacional, incentivando as crianças a compreenderem que o texto que estão lendo não foi escrito em português originalmente. Segundo a pesquisadora, é interessante reforçar “essa habilidade das crianças de identificarem o que é de autores brasileiros, o que não é da nossa cultura e que vem de fora, trazendo mais consciência da importância da figura do tradutor”. 

Apontar e refletir que o livro que está sendo lido não foi escrito pelo Maurício e sim pela Martha ajuda a despertar nas crianças um posicionamento crítico e de curiosidade, a ponto de elas se perguntarem: “quem foi/é Martha?”; “o que mais ela escreveu?”; “de onde ela e o livro vieram?”; “qual sua língua original?”. Lia reforça que esses questionamentos ajudam as crianças a pensarem o que daquela cultura é familiar à nossa e o que é diferente, além de permitir que as crianças dialoguem com muitos produtos culturais, que vêm de países diversos e muito diferentes do nosso. “Eu acho que esse trabalho é muito rico, não que exista briga, vamos dizer assim, entre o que é brasileiro e o que é traduzido, mas é importante olhar para obras estrangeiras sem deslumbramento, sabendo o espaço da evolução do sistema, quer dizer, do avanço, da renovação estética da literatura, das literaturas; elas sempre vêm em contato com outras literaturas, outras línguas, e culturas que acabam se fechando em si mesmas, elas ficam estagnadas”, encerra a professora.