Troca de ideias: As práticas educacionais de países africanos podem contribuir para avançarmos em discussões sobre a nossa educação?
Edição 50 do Letra A
Letra A • Quinta-feira, 19 de Julho de 2018, 14:50:00
Míria Gomes de Oliveira, professora da Faculdade de Educação da UFMG
Ivan Espinheira Filho, doutorando em Linguagem e Educação pela UFMG
As contribuições das práticas educativas africanas podem nos ajudar em nossas práticas na medida em que questionam a matriz colonial-ocidental essencialista, binária e autoritária. É importante reconhecer que diferentes culturas africanas constituem a diversidade da cultura brasileira e sempre estiveram presentes em nossas escolas, ainda que invisibilizadas por práticas eurocêntricas. A práxis da cosmovisão africana é resultado de uma dinâmica civilizatória que elaborou historicamente os princípios da diversidade, integração e ancestralidade.
Fruto da cultura negro-africana, tais princípios estabelecem a lógica própria das africanidades no âmbito dos processos de produção e transmissão de conhecimentos, recriando as noções fundamentais da palavra, tempo, universo, pessoa e socialização. O sujeito só existe em interlocução com o universo e é isso que o faz um ser único. Ele passa a ser a síntese dos elementos que compõem o universo que só existe porque ele os significa: a palavra funciona como a ponte, que tudo constrói ou destrói; o tempo é o tempo agora e é também o tempo dos antepassados, e o universo conjuga e garante a interação de todos os seres, sejam eles animais, vegetais ou minerais. Em um país majoritariamente negro, essa cosmovisão afirma as identidades e saberes do povo negro na estrutura socioeconômica e cultural do Brasil, dando a ver e a refletir sobre os racismos institucionais que constituem nosso sistema educacional.
Maurilane de Souza Biccas, professora da Faculdade de Educação da USP
Em 2001, teve início o Projeto de Cooperação Técnica entre a Alfabetização Solidária e São Tomé e Príncipe, em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), órgão do Ministério das Relações Exteriores. Esta cooperação técnica foi estruturada em cinco fases. A IV fase foi de consolidação da Educação de Jovens Adultos (EJA) e a V fase teve como eixo estruturador a capacitação de formadores locais (coordenação geral, setorial, distrital e os alfabetizadores). O acordo com o governo brasileiro era que, até o final da última fase, o setor de Educação de Jovens e Adultos, que figurava fora do sistema educacional, pudesse ser incorporado como uma política pública, uma modalidade educacional, o que de fato ocorreu após 2012.
O Projeto de Cooperação Técnica Alfasol-STP foi considerado referência no âmbito da Cooperação Sul-Sul, modalidade realizada entre países em desenvolvimento. No início desta cooperação, a taxa de analfabetismo do país girava em torno de 80% da população com mais de 15 anos. Atualmente, esta taxa está em torno de 22%.
A experiência profissional em São Tomé e Príncipe trouxe várias indagações que são minhas e também de muitos brasileiros, gestores, educadores que atuam em políticas educacionais de jovens e adultos: por que vários países africanos com índices altíssimos de analfabetismo, principalmente os de língua portuguesa, têm buscado o Brasil para ajudá-los, por meio de parcerias governamentais e não governamentais, para diminuir o número de analfabetos? Faço esta indagação porque não conseguimos resolver a questão do analfabetismo no Brasil, não fizemos a nossa lição de casa e, em pleno século 21, 2018, temos ainda mais de 11 milhões de pessoas que não sabem ler e escrever.
Avalio que temos sido chamados porque tivemos Paulo Freire, que lutou pela superação da opressão e contra as desigualdades sociais, a partir de uma metodologia que visava à consciência crítica por meio da consciência histórica. Este educador produziu, do ponto de vista teórico e metodológico, uma pedagogia para alfabetizar jovens e adultos, investindo em práticas que tornassem as pessoas autônomas, compreendendo que todos somos sujeitos históricos e que temos cultura.
Uma importante aprendizagem que obtive a partir do trabalho realizado em São Tomé e Príncipe, país com recursos infinitamente menores do que os do Brasil, é que, quando se tem uma prioridade, é possível obter sucesso. Eles perceberam que Campanhas de Alfabetização não resolveriam os problemas de analfabetismo do país, e que a melhor estratégia era trazer a Educação de Jovens e Adultos para dentro do sistema educacional.
Quando voltamos para a realidade do Brasil, um país continental, para apontar apenas um aspecto, que por si só traz uma infinidade de dificuldades para diminuir o analfabetismo no país, continuamos realizando Campanhas de Alfabetização, principalmente as empreendidas pelo governo federal, ao invés de ampliarmos o acesso, a permanência dos educandos e a qualidade na Educação de Jovens e Adultos.