Troca de Ideias: Quais são as possíveis relações entre o uso de tecnologias digitais e os processos de alfabetização?
Letra A 52
Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 16:35:00
Dagoberto Buim Arena - Professor Associado do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp, campus de Marília-SP
Na história da cultura humana, aprender os atos sociais, culturais e históricos de ler e de escrever sempre demandou criações provisórias, mas também permanentes recriações. Esses dois atos me parecem os reais objetos de ensino e de aprendizagem. Os dois atos se articulam a quatro outros objetos culturais: a linguagem escrita, os suportes onde ela é inscrita, os instrumentos de sua inscrição, e os gestos a eles correspondentes, materializados com movimentos dos dedos das mãos e dos pés, da cabeça, ou dos olhos. Essas criações culturais, em estreitas relações, se tocam e se modificam umas às outras. Para os brasileiros, filhos da cultura greco-romana, a linguagem escrita pareceu sempre ser alfabética, mas se todos os objetos bem articulados se modificaram ao longo dos séculos, teria a escrita se mantido incólume em sua essência?
Pode-se sugerir a hipótese de que sua original formulação alfabética grega tenha se esfarelado aos poucos, porque, se suportes, instrumentos e gestos foram recriados, os atos de ler e de escrever também foram. Os dispositivos e os aplicativos digitais chacoalham e transformam mais uma vez esse conjunto. Ao se abandonar o belvedere linguístico de apreciação da escrita para se tomar um outro, de um ponto mais elevado ocupado pela semiótica, é possível supor que o homem continua a não escrever com letras ou grafemas que se remetem a fonemas, como sempre se julgou, mas com caracteres que remetem diretamente a sentidos da linguagem.
Os teclados virtuais desnudaram a limitação da letra. Todos os pontos e todos os sinais, todos os espaços e todos os caracteres, antes marginalizados, considerados letras com penduricalhos, ganham um novo estatuto na alfabetização: o de caractere. Ele confirma ou não a existência de uma palavra gráfica; altera sentidos; cria, por isso, as condições para a formação de uma consciência gráfica. Ele assume renovada função na palavra digital, arranha o estado alfabético aparente da escrita ocidental e a semiotiza. O caractere digital recupera funções perdidas nos sistemas de origem greco-latina e de outros sistemas ocidentais historicamente empurrados para o ostracismo pelo poder político e econômico da civilização romana. Ele supera a letra em sua função de construção dos enunciados e solicita, por isso, metodologias de alfabetização que reintegrem os atos, a linguagem escrita, os suportes, os instrumentos e os gestos emergentes, prenunciados para um futuro logo depois da próxima curva.
Julianna Silva Glória – pesquisadora e membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Cultura Escrita Digital (NEPCED) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG).
Vários são os paralelos que podemos estabelecer entre tecnologias digitais e processo de aquisição da escrita. Por ora, ressaltamos brevemente algumas dessas relações para que se perceba que não se deve alfabetizar sem se atentar às práticas sociais com textos e suportes digitais. Um primeiro aspecto a ser analisado é o fato de que estamos, hoje, inseridos em um mundo de cultura escrita digital e, se pretendemos ensinar a ler e a escrever, não há como desconsiderarmos usos, portadores de gêneros textuais, modos, ambientes digitais, dentre outros, que fazem parte do cotidiano daqueles que se apropriam do sistema de escrita alfabética, visto que leitura e escrita implicam muito mais do que estudar a língua como código, mas como representação. Isto é, abrangem atitudes e valores que são construídos quando as pessoas têm a chance de conviver com a cultura escrita, como um todo, inclusive a digital, usufruindo plenamente dos benefícios que isso possa proporcionar. Nessa perspectiva de alfabetização, importa a promoção de experiências comunicativas, o que inspira a utilização de linguagens, dentre elas, a digital, constituída a partir do conhecimento de textos, domínios discursivos e de enunciação específicos desse contexto digital.
Outro aspecto relevante é o fato de que o uso de tecnologias digitais possa estimular o alfabetizando apensar além das letras, também nos gestos, comportamentos e tipos de forma de leitura e de escrita de acordo com o suporte de texto. Não estamos querendo dizer que o suporte digital de texto tenha “um poder mágico” de melhorar o processo cognitivo de compreensão do sistema de escrita em fase de apropriação da língua materna. Na verdade, acreditamos que esse deslocamento de um suporte de texto manuscrito ou impresso para o digital sirva para aguçar a noção de que, quando se usa um ou outro suporte de texto, ocorre interferência no contato e nos processos de textualização. Entendemos, ainda, que a semiosfera digital favorece multimodos e usos do texto que se apresentam efêmeros na tela, cheios de movimentação, animação e colorido. Certamente todos esses elementos tornam a aquisição da escrita alfabética muito mais significativa e transformadora. Portanto, alfabetizar usando as tecnologias digitais pode favorecer relações de aproximação diferenciadas com material escrito sempre presente em nossa sociedade.