Um pé na aldeia e outro no mundo

Com projetos de educação que valorizam os conhecimentos ancestrais e a vida nas comunidades, as escolas indígenas promovem a manutenção das tradições e o fortalecimento de identidades. Ao mesmo tempo, contribuem para a garantia de direitos e ajudam a participar do mundo fora das aldeias


     

Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 19:45:00

Por Vicente Cardoso Júnior

Algumas peças de artesanato em barro secavam ao sol enquanto eu tinha minha primeira conversa com Deda Araújo, professor de Cultura na Escola Estadual Indígena Bukimuju, no território Xacriabá, no Norte de Minas Gerais. Ele me mostrou em detalhe algumas delas, que foram feitas por seus alunos, antes de nos despedirmos e combinarmos um novo encontro para o dia seguinte. Pela manhã, Deda me esperava de moto no mesmo local. Em sua garupa, conheci outra escola Xacriabá. Estranhei que era uma construção de apenas um cômodo. Deda explicou que ela recebia apenas uma turma de Educação Infantil. Paramos em um ponto da estrada onde ele costuma fazer trilha com os alunos, para apresentar plantas medicinais ou que servem de alimento. Fomos a sua casa, onde tomei café enquanto via cocares, saiotes e outros objetos que ele confecciona. Na estrada novamente, conheci um ponto que já tinha sido um olho d’água (nascente), mas agora está seco. Deda então me contou como as mudanças no meio ambiente têm afetado a vida dos Xacriabá. Passamos pela casa de outra família onde Deda ensina artesanato para a comunidade. Chegando à quinta aldeia visitada, em uma outra escola, meu anfitrião me apresentou obras em madeira que seu primo produz – conheci ainda o artista, que mora ao lado e com quem também pude conversar.

Só então, depois de rodar toda a manhã por aldeias do território, Deda consentiu que eu gravasse uma entrevista. Para relatar experiências da educação escolar indígena, conviver e conversar de maneira menos pragmática com Deda foi fundamental. Essa reportagem do Letra A traz depoimentos de oito educadores indígenas, que contam suas trajetórias, falam sobre o papel da escola nas aldeias e destacam a importância de uma educação que valorize as tradições e os conhecimentos locais para fortalecer a identidade dos povos indígenas. As entrevistas com os educadores Xacriabá foram realizadas no final de 2014, acompanhando uma equipe de formadoras da UFMG pelo programa Saberes Indígenas. As demais entrevistas foram realizadas ao longo de 2015, em Belo Horizonte, durante atividades do curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI) da UFMG.

Conhecimento ancestral

Foi no cotidiano da aldeia e, principalmente, na convivência com os mais velhos que Deda Araújo começou a se formar educador indígena. “A gente marcava noite cultural. Chegava de tardezinha e acendia uma fogueira no terreiro, principalmente quando era noite de lua clara. Aí um contava uma história sobre caça, o outro pegava e recontava uma história sobre pesca, outro contava só sobre a terra.” Entre os relatos, batata ou mandioca assada, raiz de umbu e outras refeições típicas dos Xacriabá. Assim se dava a transmissão dos conhecimentos tradicionais, “para no dia de amanhã aqueles ali assistindo serem um dos contadores de história também”.

Da avó veio a maior inspiração. Via muitas pessoas procurarem a mãe de sua mãe para perguntar sobre as tradições dos antepassados, até que decidiu fazer o mesmo. Respeitando a autoridade da idade, a cada nova questão Deda perguntava “se poderia aprender ou não”. Após muitas histórias e explicações da avó, sentiu-se preparado para atuar em sala de aula. E estendeu sua pesquisa aos anciãos das outras aldeias, o que, para ele, ajuda a fortalecer a união entre seu povo. “Fica mais rico, porque eu posso fazer o intercâmbio entre as aldeias, para não ser uma coisa diferente [em cada uma]. Porque nós somos um povo só”, afirma.

A aula de Cultura é, portanto, uma “forma de mostrar a sobrevivência do nosso povo”, e a transmissão desse conhecimento se dá pela experiência e pela convivência. Nessa aula, uma ida à mata inicia o trabalho sobre comidas típicas, como explica Deda. “Eu levo as crianças para mostrar de qual planta é tirada a raiz ou a fruta e ensino a colher. Depois, mostro o preparo. Vamos passando todo esse processo até chegar no ponto da alimentação.” A aula seguinte é o momento de escolher um pé de árvore, para, ao redor dela, as crianças repassarem o conteúdo do dia anterior, numa forma de avaliação. “Se eles explicam direitinho, já posso ir para outra atividade. Se não conseguem explicar, eu torno a repassar de novo.”

Ver as crianças mais integradas, mais à vontade, é uma das principais diferenças que Deda percebe entre a escola onde atua hoje e aquela em que estudou. “Quando eu estudava na outra aula que não era indígena, eu e outros companheiros não tínhamos uma autonomia de mostrar nosso conhecimento da aldeia. A professora ou o professor que vinha lá de fora chegava já com seu plano de aula e tinha coisas que nem estavam no nosso conhecimento.”

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