Um pé na aldeia e outro no mundo


     

Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 19:51:00

Um olhar de dentro e outro para fora

“Se eu pensar sobre o vento, eu vou falar sobre o vento. Se eu pensar sobre as árvores, eu vou falar sobre as árvores.” A professora Ducilene Araújo, do povo Xacriabá, se refere aos contos, poemas e cantos que tanto gosta de escrever e que, às vezes, compartilha com os alunos. A necessidade de utilizar em aula textos de sua autoria vem de uma das principais carências das escolas indígenas brasileiras: a falta de materiais didáticos adequados às realidades dos diferentes povos e comunidades. Ducilene faz parte do Saberes Indígenas, programa do governo federal que parte da autoria dos professores indígenas para a produção de materiais educacionais.

Seu grupo no programa trabalhou a partir de uma plantação de horta feita na escola no ano anterior. Para transformar a experiência em conteúdos didáticos, eles recorreram a fotografias, relatos escritos e entrevistas, sempre buscando o equilíbrio entre o olhar de dentro e outro para fora. “A gente precisa preparar o aluno para ficar aqui na aldeia e para enfrentar o mundo lá fora, até mesmo morar e trabalhar na cidade.” No material criado a partir da horta, foi possível, por exemplo, falar sobre os remédios fabricados pelos parentes e, ao mesmo tempo, trazer informações sobre os agrotóxicos tão comuns nas plantações fora da aldeia. Dentre os materiais produzidos nas aldeias Xacriabá que mais agradaram na escola, Ducilene se lembra do livro das histórias dos mais velhos. “Os alunos falam: ‘Ah, eu vou ler essa história porque foi meu avô que fez’.”

Atualmente Ducilene leciona nos anos finais do Ensino Fundamental, mas atuou a maior parte de sua trajetória na Educação Infantil e na alfabetização. Era principalmente nessas turmas que fazia das músicas de sua autoria um rico material de ensino. Foi assim que ela criou seu alfabeto cantado, “para o aluno enxergar o alfabeto a partir das pessoas e das coisas”. Toda a letra traz elementos familiares para as crianças das aldeias Xacriabá, como no trecho: “Parecia a letra T o rodo que comprei / Parecia a letra C a foice que amolei / Olhei para o céu, lá em cima vi o sol / Quem inventou a letra J já conhecia o anzol”. (Escute o aúdio completo do alfabeto cantado por Ducilene)

Uma virada muito rápida

A trajetória de José dos Reis como educador se entrelaça com a história da educação escolar indígena em sua comunidade. Sua carreira na educação começou em 1997, dois anos depois de terem início as discussões sobre a implantação das escolas nas aldeias Xacriabá. Ele fez parte da primeira turma de professores de seu povo, que começou sua formação em um curso realizado no Parque Estadual do Rio Doce. Atualmente, José dos Reis é vice-diretor da Escola Indígena Bukimuju, onde os irmãos Deda e Ducilene são professores. Ele conta que, antes das escolas indígenas, os índices de alfabetização eram muito baixos, o que dificultava a composição dos quadros docentes. “Um exemplo muito forte é a aldeia Catimbinha. Lá não tinha ninguém que sabia ler e escrever. Então ia o pessoal do Barreiro Preto, até conseguir ter uma pessoa para assumir esse papel de professor dentro da comunidade.”

Nas aldeias, o papel do professor vai muito além das atividades pedagógicas: passa pela “responsabilidade de pensar em um projeto para a comunidade”, afirma José. Os professores têm um status de liderança diferente das tradicionais, que advém do domínio da escrita. Antes da escola indígena, José relata que “as pessoas discutiam mais internamente, mas não tinham muita força de levar as discussões para fora”. Foi possível observar “uma virada muito rápida do número de alfabetizados” aliada ao fortalecimento da luta por direitos, o que está relacionado a um encadeamento de fatores: a abertura das escolas demandou mais professores indígenas, o que levou à criação de cursos superiores específicos para sua formação. A discussão política se fortaleceu nas universidades, paralelamente ao maior engajamento também com a política partidária. Um dos resultados está na história recente de São João das Missões, município mineiro onde fica o território Xacriabá: o atual prefeito e seu antecessor, que cumpriu dois mandatos seguidos, são ex-diretores de escolas indígenas.

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