Um pé na aldeia e outro no mundo
Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 19:52:00
A luta pela terra: a primeira escola
A reserva indígena Caramuru-Paraguassu, onde vivem os Pataxó Hã Hã Hãe, no sul da Bahia, tem mais de 50 mil hectares e foi reconhecida pelo Superior Tribunal Federal em 2012. Enquanto essa conquista se estabelecia, o educador e líder indígena Reginaldo Ramos – Acanauã para seu povo – intercalou sua formação entre a escola e a luta pela terra – que é, para ele, “a primeira escola que a gente tem enquanto criança”. Cacique da aldeia Bahetá há 13 anos, ele defende que “sem a terra a gente não pode ter educação e saúde, muito menos alimento” e, por isso, essa conquista deve ser o foco principal de seu povo. Após a garantia da terra, a prioridade passa a ser a educação escolar indígena, porque “sem ela a gente não vai estar preparado para administrar um território e a nossa comunidade”.
Em 1999, Reginaldo foi o primeiro professor de sua aldeia, quando tinha cursado apenas até a 5ª série (atual 6º ano) do Ensino Fundamental. Hoje, ele já é formado em Pedagogia por uma faculdade particular e ingressou no meio do ano no curso FIEI da UFMG. Conforme ele e outros professores de seu povo avançaram em suas formações, as escolas indígenas também conquistaram maior espaço na vida das comunidades. “A escola hoje serve como um cérebro de tudo. Os caciques, por exemplo, vão à escola consultar os professores; a maioria dos líderes jovens são professores e as reuniões acontecem dentro da escola”, relata.
Reginaldo lembra que “houve época de a liderança assinar a própria saída da fazenda, a reintegração de posse”, por falta de conhecimento sobre o que lia e assinava. Hoje, as lideranças mais jovens assumem, entre outras ações, a responsabilidade de leitura de documentos. Para potencializar que a educação escolar atenda a necessidades específicas da comunidade, Reginaldo destaca que é papel da escola indígena e dos professores perceber, desde cedo, os perfis dos estudantes e prepará-los para assumir funções estratégicas. Assim se formaram os primeiros advogados e médicos do povo Pataxó Hã Hã Hãe, a partir de uma identificação e acompanhamento “não só dentro da escola, mas também na comunidade”. Reginaldo ressalta que a educação escolar também garante a seu povo a possiblidade de reescrever sua história: “A história do índio, na visão do índio, contada pelo índio”.
Kuin Kahab Mikahab
O esforço de resgatar a história dos Pataxó Hã Hã Hãe quase sempre leva à figura de Bahetá. Retirada à força da mata no início do século passado, estima-se que ela viveu em torno de 100 anos. Na década de 1980, quando seu povo se organizou para reocupar o território de onde havia sido dispersado, Bahetá foi identificada como a única falante viva da língua dos Pataxó Hã Hã Hãe. A anciã foi fonte de uma pesquisa que resultou na cartilha Lições de Bahetá, publicada pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em 1982. Estão reunidas ali 129 palavras e duas orações: “Kuin Kahab Mikahab” / “Quero comer, quero viver”.
Apesar de ser uma referência para a revitalização da língua, a cartilha não foi desenvolvida como material didático. Mesmo assim, a professora Amagilda Pereira, que atualmente leciona para o 2º ano do Ensino Fundamental, afirma que seu uso é indispensável nas escolas. Ela exemplifica uma possibilidade de atividade a partir dos termos bekoi, itôhã e mangutxiá: as palavras são escritas no quadro na língua indígena, apresentadas na forma de desenho, para, em seguida, as crianças também desenharem e, por fim, conhecerem seu significado em português: sol, céu e estrela. “Mesmo que a criança não consiga escrever ainda, ela memoriza”, explica Amagilda. “Por mais que não tenhamos falantes, existem algumas palavras e a gente não pode deixá-las morrer”, defende a professora.
Um dos poucos livros didáticos para o ensino diferenciado é Vivendo, lendo e escrevendo a história Pataxó Hã Hã Hãe, produzido por educadores da etnia a partir de uma formação da Secretaria da Educação do Estado da Bahia. “Heiô Heiô Ahã” é o primeiro dos onze versos do canto que abre o livro, que traz logo no início um alfabeto ilustrado, sequenciando A de arco, B de burduna, C de cabana, D de dendê... Amagilda, que foi uma das autoras, conta que a produção partiu de histórias e ensinamentos dos anciãos, que foram reescritos de forma a contemplar atividades e gêneros textuais variados. Outras características do material são a aproximação da oralidade à escrita – ao trazer, por exemplo, os cantos dos rituais – e o estímulo ao desenho e à pintura, como maneira de também alfabetizar as crianças em outras formas de expressão típicas do povo Pataxó Hã Hã Hãe. “Mas só esse material ainda é pouco”, ressalta Amagilda, que acrescenta o agravante de que hoje ele já não é mais distribuído para novos alunos.
CONTINUE LENDO
Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 1
Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 2