Um pé na aldeia e outro no mundo


     

Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 19:54:00

Fortalecer a identidade pela língua

“A questão da língua ancestral tem tudo a ver com nossa identidade, o português e sua variedade padrão têm a ver com a identidade do colonizador.” A reflexão de Luís Antônio de Oliveira, da etnia Pankararu, é fruto de sua pesquisa sobre a história da língua de seu povo, que ele desenvolve como trabalho de conclusão do curso FIEI da UFMG, na área de Língua, Arte e Literatura. O professor afirma que o estudo tem lhe dado um novo olhar para o ensino da língua em sua comunidade. “Nós vivíamos tentando aprender a variedade do português padrão, que sempre achamos difícil.” Enquanto lia referências que tratavam a língua Pankararu como extinta, em sua pesquisa de campo com anciãos, foi aos poucos descobrindo novas palavras que seriam próprias da língua falada pelos ancestrais. Assim, Luís passou a vislumbrar a possibilidade de ensinar nas escolas Pankararu, paralelamente à variante padrão da língua portuguesa, aquela que ele chama de “português indígena”, que seria bem próprio de sua aldeia, Brejo dos Padres, no município de Tacaratu (PE).

Se antes Luís estava “muito focado nos livros didáticos”, hoje ele procura “passar algumas atividades típicas da realidade do pessoal”. Para desenvolver a nova abordagem com suas turmas de Ensino Médio, o trabalho com gêneros textuais tem sido fundamental. Ao trabalhar com crônicas, por exemplo, elaborou um texto sobre dois adolescentes que se apaixonam e vivem um relacionamento em segredo devido a questões da aldeia. “Eu falo que essa é uma crônica com histórias nossas, mas digo que também existem outras, de fora, e que é bom que eles leiam para comparar.” Em outra aula, o gênero argumentativo foi abordado a partir da reflexão e do debate sobre o direito dos povos indígenas à educação diferenciada.

A escola onde Luís trabalha foi fundada em 1942 e até hoje leva o nome do antropólogo que ajudou a criá-la: Escola Indígena Dr. Carlos Estevão. No entanto, a instituição foi por décadas uma “escola europeia”, na definição de Luís, e a educação diferenciada só vem sendo construída nos últimos 20 anos. Hoje, o planejamento de cada disciplina é trabalhado em cinco eixos (terra, identidade, interculturalidade, organização e história/bilinguismo) e o quadro de professores é quase exclusivamente formado por indígenas. “A escola tem sido um caminho para reforçar nossa identidade.”

O português foi como uma ferida

Quando tinha 19 anos, Ronald dos Santos (hoje com 27) começou a ensinar na aldeia de Barra Velha o patxohã, língua do povo Pataxó. A língua indígena é disciplina presente em todos os segmentos de ensino das escolas. “Como constantemente a gente realiza rituais na comunidade, as crianças ouvem os cantos e, na Educação Infantil, vão aprendendo essas músicas e pequenas palavras. No Ensino Fundamental I, já aprendem partes da gramática, como criar pequenas frases.” No Ensino Médio, completa Ronald, já é possível trabalhar com a tradução e a produção de textos maiores, como letras de músicas relacionadas à espiritualidade e à natureza.

A língua falada pelos ancestrais de Ronald, como as demais línguas indígenas no Brasil, foi reprimida por séculos por meio de diferentes políticas nacionalistas. A dizimação e a dispersão dos povos indígenas também contribuíram para a extinção e a descaracterização de muitos idiomas nativos. No caso dos Pataxó, sobreviveu nos cantos tradicionais e em palavras e frases ditas pelos mais velhos. Em 1999, a criação do Grupo de Pesquisadores Pataxó deu impulso para a revitalização da língua. Como o contexto social e histórico é muito diferente, ela se adapta. Ronald destaca o caso da combinação de palavras para se referir às novidades tecnológicas: jiquitaiá (pássaro) e jonkate (carro), juntas, podem ser usadas para se referir a avião.

Hoje Ronald cursa Matemática no FIEI/UFMG. Nas escolas Pataxó, o patxohã está presente no ensino dessa disciplina, já existindo, por exemplo, palavras para representar os símbolos das quatro operações matemáticas básicaS. A língua indígena está cada vez mais presente também no ensino de outras disciplinas, afirma Ronald, indo além do uso básico nas saudações e no cabeçalho. Mas, mesmo revelando entusiasmo, o educador reconhece que ainda há muitas barreiras para que o patxohã se torne a primeira língua de seu povo. “O português foi como um corte, uma ferida, e não cicatriza facilmente.”